O cenário pandêmico e a imposição do isolamento social como medida mitigadora do avanço do coronavírus no Brasil podem ter mascarado as infrações dos direitos das crianças e dos adolescentes ao longo de 2020. Na passagem para 2021, os casos de violação contra esse público notificados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) cresceram 217,97%. No Rio Grande do Norte, o avanço negativo foi ainda maior: 257,91%. Esse percentual é superior ao registrado em atos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Os dados foram tabulados pelo Instituto Santos Dumont (ISD) e chamam a atenção da sociedade para a temática em virtude do 18 de Maio – Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
“Tendo em vista que a maior parte das violações são cometidas no ambiente intrafamiliar, considerando o aspecto da pandemia e a permanência das famílias em isolamento por maior tempo ao longo de 2020, compreende-se que as pessoas que sofrem violência, sobretudo a sexual, tiveram mais dificuldade em denunciar aos órgãos oficiais bem como à comunicação aos parentes, aos professores, pessoas próximas que poderiam prestar algum apoio”, analisa a preceptora assistente social do ISD, Alexandra Lima. Ao avaliar os números, ela aponta que a flexibilização para o retorno às rotinas pré-pandemia possibilitou que as vítimas e parentes se sentissem mais seguros em denunciar, visto que, encontraram alternativas de notificação dos casos sem a presença dos supostos agressores.
Os números expostos foram reunidos através das ligações efetuadas para o Disque Direitos Humanos – Disque 100, cuja base de dados é de responsabilidade da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (ONDH/MMFDH). Conforme o órgão ministerial, o Rio Grande do Norte contabilizou, no primeiro ano da pandemia, 935 denúncias que se configuraram em 2.345 violações aos direitos das crianças ou adolescentes. Uma denúncia pode gerar mais de uma violação. No ano de 2021, esses números saltaram para: 2.096 denúncias e 8.393 violações. Do total de denúncias do ano em referência, 35,54% são relacionadas à violência sexual (física ou psíquica) cometida contra crianças e adolescentes no território potiguar.
Alexandra Lima ressalta que a violência sexual, em específico, ocorre em todas as fases da vida, porém, ela é mais comum na faixa de 0 a 10 anos. “Nessa fase da vida, a criança não entende ou não percebe que está sofrendo uma violação de direitos. É mais complexa a identificação e a expressão do que vem sofrendo, principalmente porque os supostos agressores são pessoas de confiança que tem, sobre a criança, uma espécie de poder possibilitando a guarda de segredos e a não comunicação aos familiares sobre o que vem ocorrendo”, destaca a assistente social.
Ela aconselha que a criança deve ser educada a reconhecer os sinais de violência, quais tipos de atitude configuram violações ao seu próprio corpo e que segredos entre ela e seus responsáveis não devem existir. “Deve-se estabelecer uma relação de confiança entre as crianças e os seus cuidadores para que elas se sintam seguras e protegidas para relatarem situações que causem medo e dor”, enfatiza Alexandra Lima.
Os números relativos às violações sofridas por crianças e adolescentes no Rio Grande do Norte são, inclusive, superiores aos registrados em relação à violência doméstica e familiar contra a mulher e contra a pessoa idosa no estado. O MMFDH registrou, ao longo de 2021 nos municípios potiguares, 1.234 denúncias e 5.713 violações cometidas contra mulheres. No que diz respeito às infrações dos direitos dos idosos foram 1.635 denúncias e 6.948 violações. A maioria dos casos de violência ocorre na residência da própria vítima e por um intervalo de tempo superior a um ano até o registro da denúncia, segundo o órgão ministerial. A comunicação do ato violento às autoridades, na maioria dos casos, ocorre por terceiros ou anônimos.
“Houve um aumento muito grande de denúncias, principalmente, através da internet. Nós migramos muito para o ambiente virtual, em razão da pandemia, e isso possibilitou um maior quantitativo de casos notificados. A internet possibilitou uma visibilidade maior do fenômeno da violação de direitos”, afirma Manoel Onofre de Souza Neto, promotor de Justiça de Defesa da Infância e da Juventude no Rio Grande do Norte.
Subnotificação
Segundo a última pesquisa Fora das Sombras (Em inglês, “Out of the Shadows Index” 2019) criada pela The Economist Intelligence Unit, com o apoio da Childhood, OAK Foundation e CarlsonFamily Foundation, o Brasil ocupava a 13ª posição (entre 60 países) em enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes.
Mesmo com um número tão alto de registros, de acordo com pesquisas (TIC Kids online 2018), é estimado que menos de 10% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes sejam denunciados às autoridades – o que pode elevar o número ainda mais de crianças e adolescentes abusadas e exploradas sexualmente.
A subnotificação também pode aparecer em outras bases de dados. De acordo com informações do Ministério da Saúde, entre 2011 e 2017, 70% das 527 mil pessoas estupradas no Brasil anualmente, em média, eram crianças e adolescentes. Além disso, 51% das que foram abusadas têm entre 1 e 5 anos.
Números
Brasil – 2020
Denúncias: 153.183
Violações: 386.747
Brasil – 2021
Denúncias: 308.694
Violações: 1.229.760
Variação
Denúncias: + 101,51% (em números absolutos foram 155.511 a mais)
Violações: + 217,97% (em números absolutos foram 843.013 a mais)
Rio Grande do Norte – 2020
Denúncias: 935
Violações: 2.345
Rio Grande do Norte – 2021
Denúncias: 2.096
Violações: 8.393
Variação
Denúncias: + 124% (em números absolutos foram 1.161 a mais)
Violações: + 257,91% (em números absolutos foram 6.048 a mais)
A violação ocorre quando direitos básicos de qualquer cidadão são negados. Entre crianças e adolescentes, as violações mais comuns no Rio Grande do Norte, são:
Integridade Física
Psíquica (tortura psíquica; constrangimento; ameaça ou coação; negação afetiva; injúria; exposição; difamação; calúnia);
Física (maus tratos; exposição de risco à saúde; agressão ou vias de fato; insubsistência material);
Patrimonial (individual; coletivo; cultural).
Liberdade
Direitos individuais (autonomia de vontade; cárcere privado; liberdade de ir, vir, permanecer; condição análoga a escravo; sequestro; extorsão mediante sequestro);
Sexual (física, psíquica);
Laboral (exploração do trabalho);
Expressão (liberdade de consciência e de pensamento);
Religião ou crença (não crença, de culto, de crença).
Direitos Sociais
Alimentação;
Proteção à infância;
Saúde;
Segurança;
Educação;
Assistência aos desamparados;
Moradia.
Segurança
Física;
Psíquica;
Econômica.
Direitos Civis
Retenção de documentos;
Propriedade (propriedade material; propriedade imaterial);
Livre exercício do poder familiar;
Acesso à informação;
Nacionalidade;
Participação/Democracia;
Votar e ser votado.
Vida
Homicídio;
Incitação ao suicídio;
Suicídio;
Automutilação.
Meio Ambiente
Ar;
Água.
Em 2021, 48,4% (9.053) das denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes por meio do Disque 100 foram anônimas. A qualquer momento a central de atendimento da Ouvidoria pode ser acionada, 24 horas por dia, incluindo finais de semana e feriados.
A ONDH também dispõe de site, aplicativo (Direitos Humanos Brasil), WhatsApp (61-99656-5008) e Telegram (digitar na busca “Direitoshumanosbrasilbot”), que oferecem os mesmos serviços de escuta qualificada. No caso das crianças e adolescentes, a denúncia também pode ser realizada por meio do Aplicativo Sabe – Conhecer, Aprender e Proteger.
Quando a vítima é criança ou adolescente, a denúncia é encaminhada ao Conselho Tutelar e, nos casos em que a violação configura um crime, à Delegacia Especializada, ou à Delegacia Comum no caso de inexistência, e ao Ministério Público.
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