Insegurança, incertezas, medo, angústia. Sentimentos como estes têm tomado conta de Lusia Saraiva, mãe de Maria Flor, desde o último dia 8 de junho, quando a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o rol de procedimentos e eventos estabelecidos pela Agência Nacional de Saúde deixou de ser exemplificativo para ser taxativo. Com a mudança, as operadoras de saúde são obrigadas a cobrir somente os procedimentos que constam na lista da ANS.
Lusia é mãe de Maria Flor, de 12 anos, que tem paralisia cerebral, microcefalia e epilepsia refratária em virtude de sequelas de hipóxia perinatal. Com um prognóstico de vida vegetativa, inúmeras internações e dias e noites regadas a desespero e incertezas, manter Flor viva foi o primeiro desafio enfrentado – e vencido – pela família. Oferecer uma melhor qualidade de vida é a luta diária da sua família que afirma existir uma Flor antes e outra após as terapias.
Hoje, Flor realiza o protocolo PediaSuit e o Método Padovan, que é uma abordagem de reorganização neurofuncional. Já o PediaSuit é um programa de terapia intensiva multiprofissional, que trabalha pessoas com desordens neuromusculares que necessitam de repetições para aprender novas habilidades motoras, além de outros ganhos como melhor coordenação, ganho de força muscular, flexibilidade, resistência e equilíbrio. Flor também utiliza assistência médica hospitalar, conhecida como home care. Com medicações, que não são custeadas pelo plano de saúde, as despesas giram em torno de R$ 1,8 mil, além dos equipamentos como cadeira de rodas adaptada, cadeira de banho, órteses e próteses.
A mãe de Flor conta a diferença que o tratamento tem feito no dia a dia da filha. “A vida com deficiência tornou nossa família mais forte e unida para lutarmos pelo bem de Flor. Somos os olhos, os ouvidos, os braços e as pernas, somos a voz de Flor. O simples ato de respirar, que é automático para nós, para ela, era algo desafiador. Dependente em todos os sentidos, as terapias são o porto seguro para mantê-la bem, como está hoje. No início, já percebíamos a diferença pela própria formação física e, agora, com o passar do tempo, percebemos a interação, os sorrisos, o olhar atento, o ouvido que ama o forró de João Gomes. A vida que era apenas assistência de aspiração, oxigenioterapia e convulsões, hoje, apresenta ainda muitos desafios. Mas ela está mais forte, apresenta reações aos estímulos, melhora na condição física e, principalmente, qualidade de vida. As terapias hoje são o alicerce da qualidade de vida de Florzinha. Com melhoras significativas das alterações funcionais que ela tem. Nossa filha vive”, afirma Luisa.
Para ela, a recente decisão do STJ interfere na possibilidade de vida e no desenvolvimento de muitas pessoas e família. “É verdade quando se diz que o rol taxativo mata. Impedir ou interromper ou limitar as terapias de reabilitação contrariando as determinações médicas é danoso, é cruel, é desumano. Não há como compreender tamanha desumanidade em dificultar. Nós já lutamos todos os dias pela vida dos nossos filhos. Agora, vamos ter que empreender batalhas judiciais, nas quais tempo e dinheiro são recursos que, muitas vezes, impedirão em executar sonhos de crianças que já desafiam a ciência para sobreviver. Não há como olhar para todos os lados e enxergar pessoas que ficarão, mais uma vez, no difícil processo de estar à margem, sem assistência, sem oportunidades, sem possibilidades. A angústia e a ansiedade em saber como tudo vai se comportar a partir de agora são muito dolorosas”, comenta a mãe de Flor.
Terapeuta ocupacional atuante no protocolo PediaSuit, Fhábia Torres, ressaltou a necessidade do tratamento. “A continuidade da paciente no acompanhamento clínico do protocolo intensivo PediaSuit é de suma importância, haja vista os diversos benefícios que ela tem tido, como a prevenção de atrofias e deformidades, estimulação da neuroplasticidade para restaurar funções perdidas por danos neurológicos, inibição de padrões atípicos de movimento, maior tempo no controle postural, modulação sensorial e no brincar funcional”.
O advogado Bruno Henrique atua na área da saúde e convive diariamente com casos de pacientes que estão sendo prejudicados pela decisão. Isso porque o “duro golpe”, como ele define, sofrido após o entendimento do STJ de que o rol de procedimentos deve ser taxativo, pode atingir não só aos seus clientes, mas também o Pedro, de 4 anos, seu filho autista. “Os usuários de plano de saúde no geral, sobretudo, nós, pais atípicos, sofremos um duro golpe. O rol taxativo significa que, quando mais você precisar do seu plano de saúde, ele não só pode, como deve, te deixar na mão”, diz o advogado.
Especificamente no caso do seu filho, ele já tem um acordo com o plano de saúde homologado pela Justiça desde 2020. No entanto, caso haja alterações nos tipos de terapias a serem realizadas, os problemas podem surgir. “O autismo requer uma reavaliação semestral e sempre há mudanças nas terapias. Hoje, meu filho, por exemplo, necessita de terapias multidisciplinares dos mais diversos tipos como, por exemplo, psicologia comportamental ABA, terapia ocupacional com integração sensorial em Ayres, fonoaudiologia com método Prompt, método PECS e tudo isso não está incluso no rol de procedimentos da ANS. As terapias dele, especificamente, estão garantidas. Mas, se for necessária alguma alteração nas terapias que ele faz, poderemos ter problemas. Minha luta vai além do papel de pai. Puxei para mim essa responsabilidade de encabeçar a luta em nome das famílias e também como profissional”, completa Bruno Henrique, acrescentando que, mesmo após o acordo homologado, o plano de saúde ainda tentou retirar algumas terapias necessárias ao seu filho.
Na visão do advogado, a decisão do STJ prejudicará também os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). “É comprovado cientificamente que os métodos tradicionais são insuficientes para uma evolução de um quadro de autismo. Portanto, a decisão é preocupante e nós precisamos mudar isso de alguma forma. São tempos sombrios que vamos precisar superar. O rol taxativo trará prejuízos até para o SUS porque haverá um inchaço na máquina pública já que as obrigações da rede privada serão transferidas para a pública. Muito se fala sobre a obrigação do Estado em prover saúde pública, mas também é obrigação da empresa privada que se dispõe a trabalhar com saúde a oferecer um tratamento adequado e digno”.
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