Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.

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Opinião

Artigo Sobre causas e efeitos (parte 2)

Quando vamos atravessar uma rua extremamente movimentada embaixo de uma passarela, estamos assumindo um risco maior de sermos atropelados. Haverá uma certeza absoluta de que seremos atropelados? Claro que não

por: Geraldo Pinheiro, médico psiquiatra

Publicado 27 de dezembro de 2024 às 08:00

Outro dia, estava eu, na fila do supermercado, quando não pude deixar de ouvir a seguinte conversa entre duas pessoas: “Menino, um irmão meu morreu essa semana de uma pneumonia; bebeu feito um condenado durante 50 anos. Nunca teve cirrose. Que história é essa que bebida dá cirrose; isso é conversa”.

Ao que a outra já redarguiu: “E a minha avó? Essa fumou durante 65 anos e nunca teve câncer de pulmão. Está aí, vivinha. Não fuma mais porque os filhos não deixam. Onde já se viu cigarro dar câncer de pulmão? Isso é conversa desses médicos pra eles terem um jeito de ganhar dinheiro”. Ouvi pacientemente tão “profícuo” diálogo e preferi não me intrometer.

Entre essas senhoras, o que houve foi um erro interpretativo das relações de causa e efeito entre os fenômenos da natureza. Como um parente de uma delas não desenvolveu cirrose (uma condição que reconhecidamente pode estar relacionada ao uso de álcool), mesmo tendo feito uso de bebidas alcoólicas durante tanto tempo, ela já concluiu que não há nexo causal entre o uso de álcool o surgimento da doença no fígado. Fenômeno semelhante aconteceu com a outra interlocutora, que discordou da relação propalada na mídia entre cigarro e câncer de pulmão uma vez que a sua avó fumou durante muitos anos e não desenvolveu o mal.

Acredito que é possível que o leitor tenha tido experiências semelhantes: de ver pessoas discordando das ditas relações causais entre determinados fatores de risco e certos desfechos. Mas, onde está a resposta para essa interrogação? Afinal, cigarro causa ou não causa câncer de pulmão? E, se causar, como explicar o ocorrido com a tal parente da outra? As mesmas perguntas faríamos relacionando o álcool e a cirrose do fígado.

Segundo dados da OMS, cerca de 70% dos usuários de cigarro desenvolverão câncer de pulmão a depender, é claro, do quanto esse consumo é feito. Veja que esse dado pode ser interpretado assim: de cada 100 fumantes, 30 não desenvolverão câncer de pulmão (grosso modo). Então, vejam que é esperado que algumas pessoas que fumem não desenvolvam câncer de pulmão. E por quê? Porque, de uma forma geral, as doenças têm causas multifatoriais (ou fatores de risco e fatores protetores multifatoriais). O cigarro, não há dúvidas sobre isso na comunidade científica, é um fator de risco importantíssimo (70% dos fumantes desenvolvem câncer pulmão!), mas não suficiente. Ou seja, algumas vezes, não basta fumar para desenvolver o câncer de pulmão, porque é possível que o indivíduo tenha outros fatores protetores que consigam evitar o surgimento desse mal.

Às vezes, eu gosto de dizer que a medicina é a arte de medir probabilidades (e, uma vez que probabilidade mexe com números, ela é um capítulo da matemática. Então, costumo dizer, brincando, para provocar: medicina é matemática). E, nessa arte, nada é 100% garantido.

De forma grosseira, o mesmo pode ser dito na relação causal entre álcool e cirrose. Segundo a OMS, cerca de 20% dos usuários de álcool desenvolvem cirrose. Fazer uso de álcool aumenta as chances de um sujeito adquirir essa condição clínica chamada cirrose. Mas veja a expressão que eu usei: “aumenta as chances”. Eu não falei: “determina de forma absoluta”. Nesse jogo das probabilidades, o que vai definir se tal indivíduo desenvolverá cirrose ou não é o que vai mais pesar nessa balança: a soma dos fatores de risco ou a soma dos fatores protetivos. Ao fazer uso pesado de álcool, este cidadão está aumentando as chances (os riscos) de contrair cirrose.

“Apenas” aumentando as chances e não definindo a existência de cirrose. Ao decidir que não vai beber, está “diminuindo” as chances de fazer uma cirrose e não definindo que não vai ter cirrose até porque o álcool não é a única causa de cirrose. E o paralelo em relação ao cigarro é válido. Fumar aumenta os riscos (não define) de desenvolver câncer de pulmão; ao mesmo tempo, não fumar diminui esses riscos, mas não define que não vai desenvolver essa condição.

Uma influência, que tanto pode ter elementos protetores como de risco, é a genética. Nos exemplos que demos (relativos ao câncer de pulmão e à cirrose do fígado), tanto é possível que a pessoa tenha um padrão genético que seja protetivo como um padrão de risco. E essa influência (a genética) também está presente na seara em que eu mais trabalho: a psiquiatria.

Existem alguns estudos epidemiológicos que são bastante reveladores. Por exemplo, um deles mostrou que, entre portadores de esquizofrenia que tenham gêmeos univitelínicos (gêmeos idênticos), 50% dos seus irmãos idênticos também terão a doença. Isso deixa muito clara a importante influência genética nessa condição. Porém, ao mesmo tempo, nos lembra que ela não é definidora (se o fosse, não seriam 50%, seriam 100%); há outras influências a definir se um indivíduo vai ter esquizofrenia ou não.

E, ainda, quando vamos atravessar uma rua extremamente movimentada embaixo de uma passarela, estamos assumindo um risco maior de sermos atropelados. Haverá uma certeza absoluta de que seremos atropelados? Claro que não. Assim como também não é verdade que subir a passarela é uma certeza absoluta de que ela não cairá.

Assim iremos sempre verificando em que situações há maior ou menor risco, maior ou menor proteção, facilitando ou favorecendo as possibilidades, buscando o melhor bem-estar e os caminhos mais favoráveis para menos sofrimento.

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