Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.

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Opinião

Artigo Sobre causas e efeitos

O papel do cientista (e do médico também, profissional que “se alimenta” da ciência) é tentar separar o que são fenômenos consequentes daqueles apenas concorrentes. E essa separação, muitas vezes, não é fácil de ser feita

por: Geraldo Pinheiro, médico psiquiatra

Publicado 11 de dezembro de 2024 às 16:00

É da natureza humana querer entender a si próprio e o mundo à sua volta. E, para que esse entendimento se estabeleça, dentre diversos dispositivos, um dos mais fundamentais é perceber que há uma relação de causa e efeito entre alguns fenômenos observados. Porém, seremos capazes de reconhecer com segurança tal nexo em todas as circunstâncias? E mais, permitir-nos-emos verificar quando tal conexão não existe?

A tendência imediatista da nossa forma de pensar costuma nos levar para conclusões precipitadas e, não raras vezes, errôneas. Muitas vezes, dois fenômenos concorrentes – isto é, que acontecem simultaneamente – não têm relação de causa e efeito; ou seja, não são consequentes. Aqui está a gênese de muitos erros interpretativos e, certamente, a origem de boa parte das superstições, pois é fácil que o senso comum interprete que fenômenos que ocorrem juntos (ou um logo depois do outro) sejam um consequência do outro.

Dentre vários exemplos possíveis, vamos citar uma situação típica dessa espécie de erro: a interpretação da foto de um fumante de longa data. Na foto, temos uma pessoa fumando e segurando o resultado da sua biópsia, que demonstra que o mesmo é portador de câncer de pulmão; seus dedos e dentes estão amarelados. Dentes e dedos amarelados e o câncer de pulmão são eventos concorrentes naquele sujeito, mas não consequentes; ou seja: os dentes e dedos amarelados não são a causa do câncer de pulmão, nem consequência. Já o hábito de fumar é causa do câncer de pulmão e do amarelão dos dentes e dedos.

O papel do cientista (e do médico também, profissional que “se alimenta” da ciência) é tentar separar o que são fenômenos consequentes daqueles apenas concorrentes. E essa separação, muitas vezes, não é fácil de ser feita. A principal ferramenta que temos para fazê-la é o chamado método científico.

Com o método científico, aprendemos a história natural das doenças (ou seja, como elas normalmente evoluem com processos de melhora ou piora espontâneas), os mecanismos de adoecimento, os agentes etiológicos, os fatores de risco e de proteção, assim como as terapêuticas, dentre outras.

Grosso modo, o método científico treina o profissional pra ser um “desconfiado” (um cético, num linguajar mais técnico). Aprendemos a não tomar conclusões precipitadas a partir de poucos dados de observação. Sabemos da existência não desprezível do efeito placebo (que ocorre não apenas em humanos, mas também em animais): possibilidade de um indivíduo melhorar de uma moléstia a partir do uso de uma estratégia que, por si só, reconhecidamente, não tem efeito terapêutico algum. Além disso, sabemos que alguns processos de adoecimento apresentam resolução espontânea.

Entretanto, a população em geral não está armada contra as armadilhas simuladas por eventos concorrentes. Se um determinado indivíduo – não treinado nas artes da metodologia científica – observar que o seu colega está doente; e se ficar sabendo que este colega tomou esta ou aquela atitude para tentar resolver o seu mal; e, ainda, se o padecimento desse seu colega se resolver, provavelmente esse indivíduo concluirá que foi a tal atitude a responsável pela resolução da patologia. Dificilmente ele elaborará suposições de que pode ter sido uma coincidência o fato de a melhora ter havido concomitantemente à utilização daquela estratégia. Não se lembrará de que alguns processos de adoecimento têm melhora espontânea. Tampouco cogitará que poderá ser um efeito placebo.

Não é verdade que os médicos e cientistas tudo sabem, mas é verdade que eles procuram saber o máximo do funcionamento da Natureza e também é verdade que eles foram (e são continuamente) preparados e treinados para não cair nas armadilhas do famoso “parece, mas não é”, nem do menos famoso “não parece, mas é”.

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