Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu, em 1946, saúde como “um completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”. Alguns dizem que o completo bem-estar físico, mental e social é inatingível, criticando a definição da OMS de que saúde – da forma como foi definida – seria algo utópico.
Ao mesmo tempo, percebemos que tal definição permite a existência de pessoas que se encontram ao mesmo tempo sem saúde e sem doença. Essa discussão não é recente. Pelo contrário, ela é tão antiga quanto a humanidade: como definir doença, como definir saúde? E vários são os filósofos que se debruçaram sobre esse tópico. Dentre eles, destaca-se Georges Canguilhem, com seu livro seminal “o normal e o patológico”.
É claro que – se entendermos que saúde e doença estão colocadas nos extremos opostos de um espectro – não será difícil de reconhecer os casos mais salientes tanto de um polo como do outro. Nas esferas física, mental e social, é possível conceber que há indivíduos que poderão estar na plenitude do bem-estar (dentro do considerado atingível e não precisando recorrer a utopias), assim como haverá pessoas que estarão no limite inferior de suas qualidades naquelas mesmas três esferas. Observar tais extremos facilitará a percepção de que tanto a saúde como a doença existem. Mas, e os casos intermediários entre esses extremos? Quando e como saberemos onde começa a doença e onde termina a saúde?
Não raras vezes, não é fácil fazer essa distinção. E essa dificuldade tanto pode existir do ponto de vista teórico, como do ponto de vista prático. Por exemplo, alguém que tenha um aneurisma cerebral (aneurisma é uma dilatação anormal em um vaso sanguíneo; ele pode ocorrer em qualquer lugar do corpo; se ocorrer em um vaso que se encontra dentro do cérebro, dizemos que esse aneurisma é cerebral) pode conviver com ele ao longo de anos, décadas, sem ter qualquer sinal ou sintoma.
É possível que tal aneurisma nunca se rompa (este é o principal risco desta condição, uma situação de extrema gravidade, que evolui para hemorragia) e que tal pessoa nunca sinta nada. É possível ainda que este indivíduo morra sem nem saber que tinha o tal aneurisma e é possível que morra com ele (e não devido a ele). Em algum momento da vida desse indivíduo, em que ele estivesse se sentindo muito bem, se perguntássemos a essa pessoa se ele se encontrava saudável ou doente, é certo que ele responderia que estava saudável (desde que o próprio não soubesse da existência do aneurisma; se, por acaso, descobrisse, talvez até desenvolvesse uma ansiedade como consequência…).
Por outro lado, alguém que esteja com alguma virose respiratória e que esteja no dia de hoje muito sintomático (com tosse, espirros, dor de cabeça, febre) dirá, no dia de hoje, que está muito doente; por exemplo, não poderá nem trabalhar.
Ora, aneurisma e virose respiratória são doenças muito diferentes e de gravidades muito diferentes. Enquanto o aneurisma tem o potencial de matar o indivíduo, a virose, a princípio, não o tem. Entretanto, o portador de aneurisma (no meu exemplo) se diz não-doente enquanto que o portador do resfriado (no meu exemplo) dirá que estará muito doente. E por que esse paradoxo ocorre?
Hipócrates, o pai da Medicina, na sua sabedoria, já dizia que “não existem doenças, existem doentes”. A concepção teórica que os estudiosos arduamente montaram (e ainda montam), ao longo da história, para a definição de cada uma das enfermidades não passa de um modelo teórico. Útil, é claro; estudadas extensamente pelos médicos, é óbvio. Porém, isoladamente, elas – as doenças – não existem por si só. Afinal, não há enxaqueca se não houver uma cabeça para sentir dor. E a problemática do entendimento do processo saúde-doença passa pela percepção que cada um tem do seu próprio processo, levando em consideração todas as vivências e visões de mundo que esse sujeito experimentou e experimenta, o grau de sofrimento por que passa e o prejuízo da funcionalidade – pessoal e interpessoal – que esse processo imprime ao mesmo.
E, como médicos, não buscamos curar doenças; buscamos curar doentes, ou, ao menos, aliviar os seus sofrimentos.
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