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RN registra quase dois estupros por dia

Polícia Civil assinará Termo de Cooperação com Judiciário e Ministério Público para a realização de depoimentos especiais de crianças e adolescentes vítimas de violência contra dignidade sexual

por: NOVO Notícias

Publicado 4 de julho de 2022 às 16:01

Em 2021, foram registrados 605 casos, um acréscimo de quase 5%, comparado a 2020 – Foto: Divulgação

Estupro, artigo 213 do Código Penal Brasileiro. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena de reclusão de 6 a 10 anos. Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 ou maior de 14 anos, a pena passa a ser reclusão de 8 a 12 anos. Se resulta em morte, a pena vai de 12 a 30 anos. Em caso de estupro de vulnerável, no qual o crime é cometido com menor de 14 anos ou com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, a pena de reclusão é de 8 a 15 anos.

Na teoria, é isso o que diz a lei brasileira. Mas na prática, a situação é muito mais complexa. Será que a vítima de estupro terá a ‘coragem’ de denunciar? Há o receio em ser julgada? E quando o estuprador é uma pessoa próxima à vítima? Como atender e tratar alguém que passou por um episódio de estupro? É possível superar o trauma? São muitas as questões que envolvem este crime covarde e desumano. A pena para o estuprador é uma questão de justiça, mas e a pessoa estuprada? Será que ela consegue ter sua vida “de volta”?

Em 2021, o Brasil teve média de um estupro a cada dez minutos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No Rio Grande do Norte, 605 casos foram registrados em 2021, um acréscimo de quase 5%, se comparado ao ano anterior, quando os números somaram 577. Cerca de 50% desses casos acontecem com crianças e adolescentes até os 17 anos. Em 2020, foram 224 vítimas com idades entre 0 e 11 anos. Já em 2021, este número subiu para 239. Em relação a adolescentes entre 12 a 17 anos, os números somaram 198 casos em 2021 e, 196, em 2021. Os dados são da Coordenadoria de Informações Estatísticas e Análises Criminais da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social (Coine/Sesed).

Em âmbito estadual, os casos de crimes contra a dignidade sexual da mulher, independente se ocorrido no contexto doméstico e/ou familiar, são de competência das Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAMs), seja a vítima CIS ou trans. Já no caso de crianças ou adolescentes vítimas de crimes sexuais, a atribuição é da Delegacia Especializada na Proteção da Criança e Adolescente (DPCA). Atualmente, a Polícia Civil do RN conta com cinco DEAMS no Estado, mas este número será ampliado para 11 com a nomeação dos novos concursados. Já a DPCA existe apenas uma em Natal, mas serão instaladas, em breve, uma em Parnamirim e uma em Mossoró.

Na delegacia especializada, é registrado o boletim de ocorrência. A vítima é imediatamente encaminhada para cuidados médicos e, em seguida, ao Itep para a realização do exame de corpo de delito. No caso da vítima ser criança ou adolescente, em razão da Lei n° 13.431/2017, é colhido um depoimento especial, que pode ser realizado em ambiente fora da delegacia, onde a vítima se sinta segura.

De acordo com a delegada Paoulla Maues, que coordena as DEAMS e atua na Diretoria de Planejamento da Polícia Civil do RN, será assinado um Termo de Cooperação entre a Polícia Civil, o Ministério Público e o Judiciário para depoimentos especiais. “Para ouvir uma criança ou um adolescente vítima de um crime desse, é preciso obedecer a protocolos e ter capacitação específica.

Outro fato importante é o de que a PC possui outro Termo de Cooperação, desta vez com a Universidade Potiguar (UnP), no qual em todos os casos de estupros de crianças, adolescentes e mulheres, nós damos encaminhamentos para a universidade para que as vítimas recebam assistência, seja ela psicológica, médica, ou o que for preciso. Até atendimento psiquiátrico, quando necessário, é oferecido. Queremos ampliar isso para todas as universidades para que mais pessoas possam receber atendimento. O acompanhamento pós-trauma é fundamental”, afirma a delegada, acrescentando que os casos que não chegam às delegacias por iniciativa da vítima têm que chegar por meio das unidades de saúde e hospitais. “Quando a mulher sofre algum tipo de violência contra a dignidade sexual, elas vão a alguma unidade de saúde e, mesmo que ela queira mais ir para a delegacia, o hospital é obrigado a notificar.

No caso de crianças é diferente porque ela só vai a uma unidade de saúde se a família levar. E muitos familiares ocultam esses fatos ou não ouvem as crianças. Então, a criança fica sem voz e subnotificação é ainda maior. A Lei Estadual n° 10.826/21 obriga que hospitais públicos e privados notifiquem a delegacia. Já a lei federal que cria a notificação compulsória é a Lei nº 13.931/2019.”, completa.

Delegada Paoulla Maues coordena as Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher – Foto: Divulgação

Acompanhamento pós-trauma é fundamental para ‘tratar’ a vítima

O estupro pode ser praticado por qualquer pessoa, tanto por desconhecidos quanto por pessoas conhecidas, incluindo maridos, namorados/as, parentes, amigos, vizinhos, colegas de trabalho ou de estudo. Também pode acontecer em diferentes lugares, incluindo a casa, o trabalho e espaços públicos, como ruas, transportes, escolas e universidades, hospitais e centros religiosos, por exemplo. O fato é um evento complexo na vida de alguém, um evento traumático que deixa marcas para toda a vida.

Antes de ser psicóloga, Bianca Ávila foi professora de Direito Penal, Criminologia e Direitos Humanos. Hoje atua no atendimento de crianças, adolescentes e famílias LGBTQIAPN+, além de temas relacionados a gênero e sexualidade. Ela explica que o estupro é um tema permeado de muita polêmica e do qual decorrem uma série de desdobramentos. “Se a vítima decide expor o ocorrido, acaba passando por uma série de outras violências, como a exposição ao julgamento; a necessidade de contar e recontar a história, sendo obrigada a reviver o momento da violação; a exposição aos profissionais que farão o exame do corpo de delito, entre outras. Além disso, a própria pessoa violentada vive um processo interno que pode transitar entre medo, raiva, sentimento de culpa, por exemplo”, lembra a psicóloga.

Questionada se é possível ‘superar’ um episódio de estupro, Bianca Ávila explica que todos os casos merecem atenção e requerem cuidado, mesmo que com necessidade de graus de suporte diferentes. “Há casos em que a pessoa volta às atividades normais em pouco tempo e consegue lidar com o dia a dia, embora, em alguns momentos, possam ser disparados gatilhos que tragam desconforto momentâneo e que façam reviver o trauma. Em outros casos, o abalo emocional é extremo e desencadeiam transtornos que necessitam de uma atenção maior. Consequência comuns às vítimas, por exemplo, são o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), a depressão, ansiedade generalizada, crises ou transtorno de pânico, retraimento social, disfunção sexual”, pontua.

Na criação dos filhos, independente de gênero, é preciso participar de forma interessada e respeitosa para resultar em um diálogo aberto e fluido. “Ouvir o filho, tentar compreender as narrativas por ele trazidas, com interesse, compreendendo que mãe e pai têm o papel de orientar, mas que também é importante respeitar as características pessoais do filho. E isso não apenas para mãe de menina, mas, também de meninos, pois eles também podem ser vítimas de estupro. Em nossa cultura temos o hábito de desrespeitar o corpo infantil. Mesmo que a intenção seja dar carinho, se constantemente tocamos as partes íntimas dos nossos filhos, mandamos que eles tenham contato físico com outras pessoas com as quais eles não se sentem à vontade, estamos, nas entrelinhas, dizendo que é normal que invadam seu espaço pessoal”, lembra Bianca.

Outro problema é tratar assuntos ligados à sexualidade como tabu. “Se não damos a orientações adequadas em casa, eles irão buscá-las na rua e não terão instrumentos adequados para formar uma visão crítica sobre os riscos aos quais estão expostos. É necessário conversar sobre o tema, com linguagem e conteúdos adequados à idade da criança ou adolescente, e buscar informações com profissionais da área sempre que sentir-se inseguro para tratar do assunto”, conclui a especialista.