Localizado num dos endereços mais nobres de Natal, no coração da Avenida Presidente Getúlio Vargas, bairro de Petrópolis, a sede do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte (TCE-RN) é um prédio de fazer inveja a qualquer repartição pública do Brasil. Ali, os conselheiros vitalícios, além de todas as regalias do cargo e dos elevados salários, desfrutam de uma belíssima paisagem da janela dos seus gabinetes. De frente para o mar, decidem o destino e a sorte dos gestores públicos norte-rio-grandenses.
Não há ilegalidade na ocupação do prédio, herdado ainda da segunda guerra mundial (ver história). O que chama atenção é o fato de estar situado num setor residencial e causar muitos transtornos aos milhares de moradores das redondezas. Com o passar dos anos, o número dos funcionários do TCE aumentou e já não há mais vagas de estacionamento suficientes para acomodar todos os veículos que frequentam a repartição. A solução seria uma obra de ampliação. O problema é que não há áreas disponíveis para a expansão. A não ser a propriedade da vizinhança. É exatamente sobre ela que o Tribunal atua para avançar.
Há mais de cinco anos, os moradores do Edifício Luciano Barros, vizinho de muro do TCE, enfrentam uma dura batalha na Justiça para tentar preservar sua propriedade privada, desapropriada por um ato monocrático do então governador interino, Fábio Dantas, em 2015. Por decreto, o Governo “tomou” o terreno dos condôminos e doou ao TCE por considerar a área de “utilidade pública”. Num Estado e num país sérios, o correto seria o Tribunal de Contas preservar o interesse público, leiloar seu prédio super valorizado e construir nova sede com estacionamento próprio. Daria o próprio exemplo de como cuidar bem do dinheiro público.
O caminho escolhido pelo TCE foi outro. Conseguiram depositar em juízo R$ 1.759.554,00 e avançaram na transação. Mas como nem tudo é dinheiro, os moradores não topam vender o terreno por valor algum. E lutam na Justiça para preservar o direito à propriedade privada, pela qual investiram anos de trabalho. Há três processos judiciais em curso. E também uma ação popular (n° 0834632-97.2015.8.20.5001) pedindo o cancelamento do decreto de expropriação.
Um desses processos (nº 0830749-45.2015.8.20.5001) sofreu movimentação judicial, com decisão favorável à ocupação do espaço pelo TCE. Foi o retorno do pesadelo não apenas para as 40 famílias do edifício, mas para mais de 200 outras que ocupam os prédios do quarteirão. Para desespero dos condomínios, alguns idosos, a desocupação veio no meio de uma pandemia perversa. Nesta sexta-feira, às 11h40, os engravatados do TCE chegaram com uma notificação judicial para se apropriar do terreno.
Moradores recorrerão até a ultima instância
“Investimos tudo aqui, sonhamos com isso, compramos nosso espaço e agora estamos sendo despejados. Muitos moradores são idosos que sequer poderão usufruir daquilo que planejaram a vida inteira para eles, seus filhos e netos. Não há precedentes deste tipo no Brasil”, destacou a moradora Lenícia Galvão.
Os condôminos se reuniram rápido e pacificamente para protestar. Vestidos de branco, denunciam a “injustiça” que estão sofrendo, com a “apropriação indevida” da propriedade privada. “Vamos recorrer até a última instância”, afirmam.
Os moradores do Luciano Barros não estão sozinhos. Eles contam com apoio de mais 200 famílias dos seis condomínios vizinhos localizados na Rua Dr. Paulo Viveiros, atrás da Getúlio Vargas. Todos alegam que já sofrem com transtornos provocados pelos sistemas de aparelhos de ar condicionado do TCE, além do trafego intenso de veículos na área residencial. Inclusive já há determinação judicial proibindo o funcionamento da central de ar do TCE durante a noite e finais de semana por conta de transtornos comprovados aos moradores do entorno.
HISTÓRIA – O terreno da avenida Getúlio Vargas, 690, que no presente sedia o prédio do TCE-RN, foi residência, no passado, durante a 2ª Guerra Mundial, de um comandante da Força Aérea do Exército dos Estados Unidos. Considerado local estratégico no conflito, por conta da aproximação com a África e a Europa, os americanos instalaram base militar no município de Parnamirim, sob o comando geral das tropas do Exército dos EUA (US Army) tendo à frente o Major General Robert LeGrow Walsh, que fixou residência na “Casa dos Ingleses”, como ficou conhecida, na região do antigo Belo Monte, depois bairro de Petrópolis.
Em junho de 1942 o General Walsh foi nomeado comandante da Força Aérea do Exército dos EUA (USAAF) para toda a região do Atlântico Sul (South Atlantic Wing). Ele permaneceu em Natal até junho de 1944, quando foi anunciado novo comandante geral do comando Oriental das Forças Aéreas Estratégicas dos EUA na União Soviética e membro da Missão dos Estados Unidos em Moscou. Era um militar sério, correto e que mantinha uma boa relação com a comunidade local.
Após a saída dos americanos de Natal, o local foi utilizado como sede da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte a partir de 18 de setembro de 1947, permanecendo até os primeiros anos da década de 1960. Em 1965 passou a ser a sede do TCE, cuja atual edificação foi inaugurada no ano de 2002.
Até ser concretizada, a investida do TCE deverá enfrentar muitos obstáculos judiciais. Já há pelo menos quatro ações em curso e possibilidade de mais uma enxurrada delas, uma vez que os condôminos ameaçam processos individuais. Isso pode custar ainda mais caro ao Estado do Rio Grande do Norte. Em entrevista ao Novo, um dos moradores, que pediu para não ser identificado, narrou um fato interessante que aconteceu numa audiência de conciliação entre o Estado e os condôminos. Na ocasião, o juiz auxiliar Bruno Lacerda, que comandava a audiência, teria afirmado que para este caso caberia bem resgatar uma das expressões ou frases que melhor ilustram a crença na Justiça para enfrentar a arbitrariedade:
“Ainda há juízes em Berlim”
O episódio teria ocorrido no século XVIII e foi narrado por François Andriex (1759-1833) no conto “O Moleiro de Sans-Souci”. A frase foi pronunciada por um moleiro alemão e dirigida a ninguém menos que o Imperador alemão Frederico II o Grande.
Frederico II era um monarca do século XVII caracterizado como “déspota esclarecido”. O Imperador mandou construir um palácio de verão em Potsdam, próximo a Berlim, e escolheu a encosta de uma colina, onde já se elevava um moinho de vento, o Moinho de Sans-Souci, nome que decidiu dar ao palácio.
Alguns anos após, o imperador queria aumentar alas do palácio. Avançou sobre o terreno do antigo moinho decidiu comprá-lo. O moleiro recusou a venda da propriedade, argumentando que não poderia vender a casa na qual seu pai havia falecido, que lhe deixara por testamento, e onde seus filhos nasceriam e se criariam.
Falando a linguagem da arrogância e da arbitrariedade, o imperador insistiu na oferta acrescentando que, se quisesse, podia simplesmente tomar-lhe a propriedade. Coube então ao aldeão simples, com firmeza e dignidade, dar a resposta que ficou registrada nos anais históricos da humanidade:
“Isso seria verdade, se não houvesse juízes em Berlim!”
Para o moleiro, a Justiça protegeria seu direito, pois não levaria em conta na sua decisão as diferenças sociais e de poder, mesmo em uma monarquia, mesmo num litígio em que um moleiro confrontava um imperador.
Sua corajosa resposta passou a ser lembrada para demonstrar uma situação de respeito à liberdade e de confiança do cidadão na independência do judiciário.
O moinho, até hoje existe e, sempre que um juiz corajoso se posiciona com independência e justiça frente a uma arbitrariedade, a expressão “ainda existem juízes em Berlim” é usada para ilustrar situações em que o Judiciário deve limitar o poder absoluto dos governantes.
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