Fome, geladeira vazia, panelas secas, incerteza e desespero. Esse é o dia a dia da potiguar Angélica Guimarães, que tem três filhos e está desempregada.
“Meu armário está sem nada. Eu vivo com a ajuda de vizinhos. Têm dias que a minha filha pede um pão e eu não tenho para dar. Sou eu sozinha para pagar aluguel, luz, remédio, comida… agora minha mãe veio morar comigo, e ela tem diabetes. Só Jesus sabe o que eu estou passando”, contou, desesperada, a dona de casa.
O aposentado Reginaldo Teixeira vendeu picolé durante 34 anos em Natal. Hoje ele é catador de material reciclável, vive em situação de rua e todas as noites é assistido por voluntários que distribuem comida na capital potiguar. “Eu durmo na casa de um parente, mas toda noite venho para a fila do ‘sopão’. Eu tenho prestado atenção e o número de pessoas pedindo ajuda aumentou muito. Tem vezes que a fila aqui fica tão grande que não dá para todo mundo”, relatou.
Edileuza Faustino, mais conhecida como Edi, mora em Parnamirim e frequentemente ajuda pessoas em situação de vulnerabilidade. Ela relata que a demanda só aumenta. “Aqui em Parnamirim tem muitas pessoas passando necessidades. Eu e minhas irmãs sempre fazemos cestas para as igrejas, mas muita gente vem bater na minha porta pedindo ajuda”, contou.
A fome está sendo realidade para 33,1 milhões de brasileiros atualmente e está avançando cada vez mais rápido pelo Brasil. No final de 2020, 19,1 milhões de pessoas conviviam com ela no país, ou seja, 14 milhões a menos que em 2022. O número atual, que equivale a 15,5% da população, quase dobrou em dois anos.
Os dados são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) em parceria com seis entidades e ONGs.
A crise provocada pela pandemia da covid-19 está diretamente relacionada ao avanço, ainda maior, da fome nos últimos dois anos. É o que afirma Ana Maria Segall, médica epidemiologista e pesquisadora da Rede PENSSAN.
“A pandemia surge neste contexto de aumento da pobreza e da miséria, e traz ainda mais desamparo e sofrimento. Os caminhos escolhidos para a política econômica e a gestão inconsequente da pandemia só poderiam levar ao aumento ainda mais escandaloso da desigualdade social e da fome no nosso país”, apontou.
De acordo com Gllauco Smith, sociólogo e professor do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), essa problemática da fome não é algo conjuntural, mas sim estrutural. “Em se tratando de Brasil, particularmente, tem a ver com nossas raízes, com nosso substrato socioeconômico, marcado por agudas desigualdades de todas as ordens: crescemos, como povo brasileiro, sob os alicerces de um projeto econômico produtor de famintos. E isso decorreu, e ainda decorre, das assimétricas relações sociais pelas quais a distribuição da riqueza social é absurdamente desigual, excludente e, por isso mesmo, injusta em seu âmago. Trata-se de uma força social que desintegra a organização social, deixando-a patológica. A fome é, assim, ao mesmo tempo, sintoma e patologia de uma sociedade que já se ergueu doente”, afirmou.
Ele ainda pontuou que a pandemia da covid-19 acentuou a exclusão social já existente no país. “Esse numeroso contingente populacional é composto, sobremaneira, por pobres. E pobres que não estão somente sob risco alimentar, mas, principalmente, que não têm o que comer. Trinta milhões de famintos é a face mais desumana do descaso humano em relação a outros humanos”, lamentou o sociólogo.
A única solução para a atual situação de fome no país, segundo Gllauco, seria a criação de políticas públicas efetivas voltadas para o enfrentamento desse cenário. “Quando falo em enfrentamento, me refiro a uma atuação estatal de curto, de médio e de longo alcance, porque não adianta socorrer agora e esquecer depois. É preciso entender que a fome, assim como outros problemas a ela relacionados, devem ser alvos de políticas públicas permanentes, especialmente no Brasil, país de persistentes antagonismos sociais”, finalizou o professor.
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