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“Não queria fazer parte disso”, diz russo que desertou da guerra na Ucrânia

Oficial revelou por que arriscou tudo para sair do conflito.

por: NOVO Notícias

Publicado 23 de maio de 2022 às 06:45

Tropas russas perto da usina siderúrgica de Azovstal, na cidade ucraniana de Mariupol
– Foto: Alexander Ermochenko/Reuters

Foram algumas semanas dormindo em caixotes de granadas e escondendo seu rosto dos ucranianos em meio a um crescente sentimento de culpa. Até que o oficial russo de baixa patente chegou à uma conclusão: essa batalha não era dele.

“A gente estava sujo e cansado. As pessoas ao nosso redor estavam morrendo. Eu não queria me sentir parte disso, mas fazia parte”, contou o militar à CNN.

O homem contou que foi até seu comandante e desistiu de sua missão.

Para sua segurança, o nome do oficial ou detalhes pessoais que ajudariam a identificá-lo não serão revelados.

Sua história é notável, mas também pode ser uma entre muitas, de acordo com opositores da guerra na Rússia e na Ucrânia que dizem ter ouvido falar de muitos casos de soldados, tanto de carreira como recrutados, que se recusaram a lutar.

As tropas russas têm lutado com o baixo moral e as pesadas perdas na Ucrânia, de acordo com avaliações de autoridades ocidentais, incluindo o Pentágono dos EUA. A Agência de Inteligência, Cibersegurança e Segurança do Reino Unido diz que alguns militares se recusaram a cumprir ordens.

O Ministério da Defesa russo não respondeu a um pedido de comentário da reportagem.

Uma missão desconhecida

O oficial que conversou com a CNN disse que fazia parte do maciço de tropas no oeste da Rússia que desencadeou temores globais pela Ucrânia ainda antes da invasão. Mas ele disse que não pensava muito sobre isso, nem mesmo em 22 de fevereiro deste ano, quando ele e o resto de seu batalhão foram obrigados a entregar seus telefones celulares enquanto estavam parados em Krasnodar, no sul da Rússia, sem nenhuma explicação.

Naquela noite, eles passaram horas pintando listras brancas em seus veículos militares. Em seguida, os superiores pediram que eles lavassem as pinturas. “A ordem mudou, agora vocês devem desenhar a letra Z, como a de Zorro”, disseram para eles.

“No dia seguinte, fomos levados para a Crimeia. Para falar a verdade, achei que não iríamos para a Ucrânia. Eu não pensei que chegaria a isso”, disse o homem.

No dia 24 de fevereiro, enquanto sua unidade se reunia na Crimeia (a região ucraniana anexada pela Rússia em 2014), o presidente Vladimir Putin lançou uma nova invasão da Ucrânia.

Mas o oficial disse que ele e seus companheiros não sabiam, pois nenhuma notícia foi passada para eles e, sem seus telefones, eles estavam sem contato com o mundo exterior.

Dois dias depois, eles foram mandados para a Ucrânia.

“Alguns homens se recusaram abertamente. Eles escreveram um relatório e foram embora. Não sei o que aconteceu com eles. Eu fiquei. Eu não sei por quê. No dia seguinte fomos para a Ucrânia”, lembrou.

O oficial disse que não conhecia o objetivo da missão. Segundo ele, as afirmações bombásticas do presidente russo, Vladimir Putin, de que a Ucrânia era parte da Rússia e precisava ser “desnazificada”, não chegaram aos homens convocados para lutar.

“Não fomos doutrinados com algum tipo de retórica sobre ‘nazistas ucranianos’. Muitos não entenderam a razão de tudo isso e o que estamos fazendo aqui”, disse.

Ele contou que esperava uma solução diplomática e se sentia culpado com o fato de a Rússia ter invadido a Ucrânia. Mas acrescentou que não era bem versado em política.

Em conflito

A primeira coisa de que o soldado se lembra depois que sua unidade atravessou a fronteira em uma longa coluna de veículos foi ver caixas de suprimentos russos espalhadas por toda parte e pilhas de equipamentos destruídos.

“Eu ficava sentado no KAMAZ [caminhão], segurando com firmeza uma arma. Eu tinha uma pistola e duas granadas comigo”, contou.

O batalhão seguiu para o noroeste, na direção de Kherson. Ao se aproximarem de um vilarejo, um homem com um chicote saltou e começou a chicotear o comboio e gritar: “Vocês todos estão f***!”, lembrou o oficial.

“Ele quase subiu na cabine onde estávamos. Seus olhos estavam inchados de tanto chorar. A cena me deixou muito impressionado”, acrescentou. “Em geral, quando víamos os moradores, ficávamos tensos. Alguns escondiam armas debaixo das roupas e, quando se aproximavam, disparavam”.

Ele disse que escondia o rosto por vergonha e segurança, porque se sentia envergonhado de ser visto pelos ucranianos na terra deles.

Os russos também sofreram ataques mais pesados, contou o homem, com morteiros apontados para eles no segundo ou terceiro dia em que estavam na Ucrânia.

“Durante a primeira semana, fiquei em estado de choque. Não pensava em nada”, relatou. “Eu ia dormir pensando: ‘Hoje é 1º de março. Amanhã vou acordar, será 2 de março; o principal é viver outro dia’. Várias vezes as bombas caíram muito perto da gente. É um milagre que nenhum de nós tenha morrido”, disse.

Reações nas fileiras

O oficial contou que não era o único soldado preocupado ou confuso sobre o motivo de ser enviado para invadir a Ucrânia. Mas também se lembra de se animar quando soube que os bônus de combate seriam pagos em breve.

“Uma pessoa disse algo do tipo, ‘Ah, mais 15 dias aqui e vou quitar meu empréstimo’”, lembrou.

Depois de algumas semanas, o oficial foi posicionado mais perto da retaguarda, acompanhando equipamentos que precisavam de reparos. Ali, ele ficou mais consciente do que estava acontecendo e teve mais tempo e energia para refletir.

“Tínhamos um receptor de rádio e podíamos ouvir as notícias”, contou. “Foi assim que soube que as lojas estão fechando na Rússia e a economia está entrando em colapso. Eu me senti culpado por isso. Mas me senti ainda mais culpado porque viemos para a Ucrânia”, relatou.

Ele disse que sua determinação endureceu a ponto de haver apenas uma coisa que ele poderia fazer.

“No final, reuni minhas forças e fui até o comandante para escrever uma carta de demissão”, disse ele.

A princípio, o comandante rejeitou o pedido e lhe disse que era impossível se recusar a servir.

“Ele me disse que poderia haver um processo criminal contra mim. A recusa é traição. Mas eu me mantive firme. Ele me deu uma folha de papel e uma caneta”, disse o oficial, acrescentando que escreveu sua carta de desistência ali mesmo.

Relatos de mais ‘refuseniks’

Mesmo dentro do ambiente rigidamente controlado dos meios de comunicação russos, houve outros relatos de soldados se recusando a lutar.

Valentina Melnikova, secretária executiva da União dos Comitês de Mães dos Soldados da Rússia, disse que muitas reclamações e preocupações foram ouvidas quando as primeiras unidades saíram da Ucrânia para descansar.

“Soldados e oficiais escreveram cartas de demissão, que não eles conseguiram entregar devidamente. As principais razões são, em primeiro lugar, são o [baixo] moral e o estado psicológico. E a segunda razão são as convicções morais. Eles escreveram cartas na época e continuam escrevendo relatórios agora”, contou a secretária executiva.

Melnikova, parte da organização formada em 1989, disse que todos os militares têm o direito de apresentar os pedidos, mas reconhece que alguns dos comandantes podem recusá-los ou tentar intimidar os soldados.

A organização muitas vezes aconselha os soldados sobre como redigir essas cartas e fornece aconselhamento jurídico. A Diretoria de Inteligência da Ucrânia informou que em várias unidades russas, especificamente na 150ª Divisão de Fuzileiros Motorizados do 8º Exército do Distrito Militar do Sul, até 60% a 70% dos soldados se recusaram a servir.

CNN não pode verificar esse número.

Na Rússia, Melnikova disse que houve “muitos” casos de soldados que se recusaram a lutar na Ucrânia, mas não forneceu detalhes, citando preocupações legais e de segurança.

Aleksei Tabalov, ativista de direitos humanos e diretor de uma organização que ajuda recrutas russos, disse à CNN que consultou pessoalmente dois soldados que deixaram as forças armadas.

“Falamos com dois que se recusaram a lutar e nos procuraram, e eles contaram que na brigada deles outros 30 fizeram a mesma coisa, se negando a lutar”, disse Tabalov.

O ativista disse que, ao pedir demissão, os soldados citaram que não concordaram em participar de uma operação especial contra a Ucrânia no momento em que assinaram o contrato.

Ausentar-se sem licença do exército russo é uma ofensa criminal punível com pena de prisão. No entanto, aqueles que servem sob contrato têm o direito legal de pedir demissão no prazo de dez dias após a saída do serviço, apresentando uma explicação do motivo da sua saída.

“Não posso dizer que seja um fenômeno de massa, mas é um movimento bastante forte. Se estimarmos todos os casos de outras organizações, mais as informações indiretas, o número ultrapassa mil”, detalhou.

Segundo ele, o recrutamento ainda está em andamento no país, e os novos soldados geralmente vêm de regiões mais pobres com menos perspectivas.

Milhares de soldados russos morreram na Ucrânia desde o início da guerra. As Forças Armadas da Ucrânia estimam as perdas russas em mais de 22 mil pessoas. A última vez que o Ministério da Defesa russo abordou perdas foi em 25 de março, relatando a morte de 1.351 militares.

O ministério não respondeu ao pedido de atualização da CNN.

O oficial agora está com sua família.

 

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