Primeira exposição individual de Aldenor Prateiro traz 31 peças que — usando elementos do artesanato popular — enfrentam temas como o machismo, a homofobia, o racismo e o colonialismo
Publicado 18 de setembro de 2023 às 15:30
Quando completou 4 décadas de carreira como professor, Aldenor Gomes da Silva se viu diante de uma crise: tinha sensação de que tudo o que fizera até ali não valia de nada. Pós-doutor em Ciências Sociais com doutorado pela Unicamp em Economia Agrícola, ex-coordenador de departamento do curso na UFRN e ex-coordenador do programa Fome Zero no Nordeste, ele se ressentia da falta de avanço na sua área. Brincava que se chegasse ao céu e encontrasse o pesquisador Josué de Castro (1908-1974), ia levar uma bronca: “Mas Aldenor, não fizeste quase nada. Está tudo do jeito que eu deixei”, imaginava o autor de “A Geografia da Fome” dizendo.
Diante daquela sensação, ele decidiu se aposentar e iniciou um processo artístico que envolve o resgate de suas vivências, a aceitação da negritude e o nascimento de uma nova postura diante de temas como o machismo, o racismo, a homofobia, a desigualdade social e o colonialismo. O resultado dessa transformação poderá agora ser visto na exposição inédita “Nem tudo que reluz é ouro”, a primeira individual de Aldenor Prateiro, nome que adotou desde 2015. A abertura da mostra será quinta-feira (21), às 18h, na Galeria Conviv’art do Núcleo de Arte e Cultura da UFRN.
A exposição é composta por 31 peças feitas à mão nas quais o artista usa elementos da cultura popular e do artesanato — como os abridores de garrafa de madeira em forma de pênis — para produzir arte contemporânea contestadora e decolonial. A base para isso é a própria história de Aldenor, que nasceu em Mossoró, foi seminarista, viu a fome de perto e viveu situações pessoais que lhe marcaram muito. É desse diálogo com o passado que se funda a arte que Prateiro lança ao futuro.
Para chegar a isso, três capítulos foram importantes na sua formação. O primeiro, um curso de como forjar jóias em prata, feito em 2014, do qual ele aproveitou a parte técnica somente para iniciar suas primeiras peças, inspiradas nas folhas da caatinga. O segundo, uma visita de sua filha mais nova, a artista visual Mariana do Vale.
“Ela me visita, vê meu trabalho, que ela não conhecia, e diz assim: ‘Pai, você é um artista’. E aí a partir daí começa a me recomendar leituras. E eu começo a entender que existe uma arte conceitual, que é mais importante do que a arte pela arte. Aí eu começo a estudar, desperto para a arte e é interessante como eu vou juntar todos esses elementos: a fome, a miséria, a negritude, o machismo. E hoje não tenho dúvida que eu consigo fazer esse gancho”. A exposição de agora, inclusive, conta com a curadoria de Mariana do Vale, junto com a artista visual Lara Ovídio e a pesquisadora Ana Paola Ottoni.
E o terceiro: tinha um Manoel de Barros (1916 – 2014) no meio do caminho. Prateiro se identifica com a pessoa do poeta das insignificâncias, que também explora muito o rural, e se encanta com a poética dele. Ele aprende com aqueles poemas que poderia (na sua arte) ser mais espontâneo, explorar seu próprio quintal, seu passado. E que suas peças não precisavam estar amparadas, cada uma delas, por uma tese acadêmica.
É a partir daí — desse cadinho que funde lembranças, experiências e conhecimentos — que vão nascendo as obras hoje prestes a serem expostas em “Nem tudo que reluz é ouro”. “Eu comecei a juntar tudo isso, por isso que minha exposição, minhas peças, minha poética, traz essas coisas — escravidão, negritude, machismo e preconceito — bem entrelaçadas”, explica.
Exemplo disso é a peça “Pé de Pau”, na qual Aldenor usa alguns abridores de garrafa em forma de pênis, para discutir o machismo, algo que sempre esteve presente na sua vida, desde a infância, quando o achavam diferente por considerar mais interessante as brincadeiras das meninas. E também no seminário, quando entrou em contato com a hipocrisia da igreja católica com relação à homossexualidade.
Outro exemplo é “A Viugem”, uma Virgem Maria negra que usa um manto feito com uma mantilha que pertencia à mãe de Aldenor, Concessa. O nome se deve ao fato de que ela só pronunciava a palavra virgem assim: “viugem”. “Eu comecei a corrigir minha mãe: ‘Não é viugem, é virgem’. E aí ela se incomodava. E eu achei que a melhor forma que eu tinha era deixar de conversar com ela para poder ter minha linguagem. Eu fui para a escola para romper com minhas tradições”, relembra. A obra é também uma forma de resgatar a memória de sua mãe.
Essa obra discute ainda a negritude, um traço muito forte da obra de Prateiro. O artista conta que durante toda vida ignorou essa questão, até que em 2016 uma professora comentou que ele era o único professor negro que ela tinha tido. Ele recorda que no dia do comentário, olhou para uma amiga e disse: “A professora está dizendo que eu sou negro”. E ela respondeu: “Mas você não é negro, não”. “Eu fiquei tão doído. Como é que você diz um negócio desses a uma pessoa que está se resfolegando porque se identificou como negro?”, conta, denotando o racismo estrutural que existe na sociedade brasileira.
Agora, aos 76 anos, Prateiro reflete sobre isso e também sobre o fato de ter se tornado esse homem negro artista após os 70 anos. “Eu acho que eu sou um privilegiado. Estou tendo tempo de resolver essas coisas que estou resolvendo hoje. Isso tem me libertado muito”, diz. E acrescenta: “É uma arte de libertação porque nunca achei que eu estava reproduzindo nas minhas artes a minha história. Eu estou reproduzindo a história de um indivíduo, de uma de uma nação”, afirma.
“Nem tudo que reluz é ouro”, cujo período de visitação é de 22 de setembro a 17 de outubro, é uma oportunidade de conhecer essa obra, feita por um artista que — sem perceber — vem se construindo desde a segunda metade do século passado, quando aprendeu a consertar terços de cristal no seminário e a dar os primeiros pontos de costura com sua mãe. É a chance de dialogar com o pensamento de um estudioso que viu a fome de perto, ajudou o País a sair desse mapa cruel e depois assistiu a volta a este território sobre o qual ninguém deveria pisar. E é acima de tudo a possibilidade de entrar em contato com a visão de mundo de um homem negro que se reinventou e, por meio da sua história, consegue promover dois dos maiores encantamentos da arte e da poesia: gerar espanto e ser universal, sem que para isso precise tirar os pés do seu quintal.
O quê: Primeira exposição individual de Aldenor Prateiro, com 31 obras
Abertura: 21 de setembro (quinta-feira), às 18h
Período de visitação: 22 de setembro a 17 de outubro, de segunda a sexta, das 8h às 16h
Onde: Galeria Conviv’art do Núcleo de Arte e Cultura/NAC/UFRN. Anexo da Biblioteca Zila Mamede/UFRN (Andar térreo — Campus Universitário)
Quanto: Visitação Gratuita
Rede social: https://www.instagram.com/aldenorprateiro
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