Crises na Segurança do RN “têm vínculos com a forma como Estado democrático lida com o sistema prisional”, diz delegado da Polícia Civil

Em entrevista exclusiva ao Blog, abordando pontos de vista técnico e político sobre ataques criminosos mais recentes, Fernando Alves avaliou que Governo Fatima “reagiu rápido” diante do problema

por: Foto do autor Daniela Freire

Publicado 23 de março de 2023 às 22:37

O drama vivenciado na Segurança Pública do RN em 2017, em Alcaçuz, e o de 2023, em todo o Estado, “tem vínculos com problemas nacionais e não apenas locais” e “na forma como o Estado democrático, desde a Constituição de 1988, lida com o sistema prisional”. A constatação é do Delegado de Polícia Civil do Rio Grande do Norte Fernando Alves, em entrevista exclusiva ao Blog.

Mestre em Ciência Política pela PUC-SP, militante do Movimento Policiais Antifascismo e coordenador do Setorial de Segurança Pública do PT-RN, ele avaliou os ataques criminosos ocorridos nas duas últimas semanas no RN sob os aspectos técnico e político. Sobre postura do Governo Fátima Bezerra, ele ressaltou que a gestão estadual “reagiu rápido” diante da adversidade.

Lembrando que a instituição Polícia Civil, da qual Fernando faz parte, participou ativamente da luta contra as ações dos criminosos e tem contribuído de forma fundamental para a diminuição em mais de 90% no número de ataques.

 

Leia a entrevista completa abaixo 👇

1. Estamos terminando a segunda semana com os ataques criminosos no RN seguindo em queda vertiginosa. Nos primeiros dias de terror, no início da semana passada, instituições como MP, PF, Sesed e a própria Polícia Civil, da qual o senhor faz parte, afirmaram que as ações  estavam ocorrendo por insatisfação de uma determinada facção devido ao endurecimento nas regras que tratam do sistema carcerário desde 2017, além da reclamação, por parte dessa organização, de que apenados não estão tendo o tratamento adequado dentro das penitenciárias. Enquanto isso, o que alguns parlamentares da extrema-direita do RN fizeram foi pedir impeachment da governadora Fátima Bezerra, implantação de GLO ou até intervenção federal no Estado. Como integrante da Polícia como o senhor analisa esses tipos de posicionamentos?

Fernando Alves: Acredito que o pronunciamento oficial do governo do Estado, através da Secretaria de Segurança, sobre os supostos motivos alegados pelas facções criminosas para os ataques criminosos em Natal e no restante do RN, acaba por contribuir para uma narrativa conveniente para as facções, para o crime organizado. Entendam que, em nenhum momento, eu nego que existam falhas, e que o sistema penitenciário não esteja em déficit no cumprimento da Lei no respeito aos direitos fundamentais de apenados. O que digo é que as facções criminosas se valem dessas supostas falhas como pretexto para praticar crimes, o que é inaceitável. O questionamento de regras rígidas do sistema e a falta de tratamento adequado, como reivindicações quanto à qualidade da alimentação, medicamentos e atendimento à saúde, itens de higiene e limpeza, e direito à visita de familiares, devem ser feitos, democraticamente, pelas associações de familiares de presos, a Defensoria Pública, o Conselho Penitenciário, a Ordem dos Advogados ou quaisquer entidades da sociedade civil que se empenham na defesa dos direitos humanos e denúncias quanto a suas violações, e não por grupos de bandidos armados, que incendeiam e destroem patrimônio, impedem o transporte público, ameaçam ou tiram vidas, além de instalar um clima de terror e medo na população.

Organização criminosa não quer melhoras para os presos. Facções criminosas só querem vantagem para si próprias. A situação precária dos presídios é só pretexto!

Por outro lado, o que se vê no âmbito da oposição ao governo estadual, é puro oportunismo, com a atual crise no sistema de segurança. O oportunismo é natural na política, mas chega a ser caricato, diante do quadro gravíssimo de violência e instabilidade nas ruas. Afinal, como é que políticos e militantes da extrema-direita, tão defensores da “manutenção da ordem”, estão, agora, contra um governo que quer, exatamente: manter a ordem? Pedir o impeachment da governadora na Assembleia Legislativa é de uma burrice parlamentar que chega a ser um tiro pela culatra, pelo deputado que porventura a defenda. Afinal, como não chamar de golpismo o fato de um parlamentar defender a retirada de um governante, num momento de crise na segurança, diante do ataque de grupos criminosos, se ele mesmo não tem um plano de contingência para debelar a violência, quando se depara com um governo que já mostrou serviço, ao mobilizar todo seu efetivo e convocar a Força Nacional? Para que GLO e intervenção federal pelas Forças Armadas, se tais intervenções, num conflagrado Rio de Janeiro já se mostraram historicamente ineficazes? Uma facção criminosa não vai deixar de recrutar integrantes e praticar delitos com tanques e soldados nas ruas. O crime organizado funciona de forma subterrânea, por meio de mensagens de texto e chamadas de smartphone. Não é um exército visível. Visível é apenas a caça oportunista de votos, de políticos de oposição aproveitadores, e, até mesmo insensíveis, que, ao pensar somente no projeto eleitoral de 2024, esquecem que o RN precisa do apoio e união de toda a classe política do Estado, para evitar que o caos instalado pelo crime afete toda nossa democracia.

2. Facções criminosas começaram a se instalar no RN há cerca de 15 a 20 anos. No governo Robinson Faria, antecessor de Fátima, já houve uma crise dramática envolvendo essa realidade, que culminou na morte de 26 apenados em Alcaçuz. Por que em tantos anos os governos anteriores não conseguiram trabalhar para evitar que hoje o RN passe por essas crises na segurança pública?

FA: Creio que o drama vivenciado em 2017 em Alcaçuz, e o que agora vivemos em 2023, tem vínculos com problemas nacionais e não apenas locais, na forma como o Estado democrático, desde a Constituição de 1988, lida com o sistema prisional. Na verdade, apesar de termos uma Constituição cidadã e avançada, o nosso modelo de Estado, sobretudo no que tange à segurança pública e sistema prisional, é muito atrasado. Para se ter uma ideia, temos uma Lei de Execução Penal, de 1984, que, a despeito de organizar todo o modelo penitenciário do país, até hoje não é ou é muito mal aplicada, no que tange à organização e direitos dos presos, mas, principalmente, no que diz respeito à ressocialização. Como falar em ressocializar, reintegrar à sociedade, milhares de egressos que já cumpriram pena, se não há mecanismos de inclusão social, os patronatos e órgãos de reinserção, instituídos por Lei não funcionam ou não foram instalados e, aqui no RN, a solução paliativa é investir em tornozeleiras? Não basta saber onde cumpridores de penas estão; mas sim saber o que estão fazendo e se há um atendimento de assistência social eficiente, que permita a maioria dos apenados buscar soluções para sua sobrevivência, que não importem numa adesão automática à facção criminosa. Facções como o Sindicato do RN e o PCC são empresas capitalistas do crime, e que o interessa a elas, como a qualquer empresa, é adquirir e qualificar mão de obra para produzir lucro para seus investimentos (no caso das facções, empreendimentos criminosos). O sucesso do crime organizado, a meu ver, revela o fracasso do modelo de um capitalismo atrasado e periférico que temos no Brasil e na América Latina, pois, uma vez que não há inclusão para todos (principalmente com carteira assinada, após uma reforma trabalhista canhestra), só resta a inclusão pelo crime, no recrutamento feito pelas facções, principalmente dos mais jovens e vulneráveis. Pra se resolver um dilema desses, não adianta apenas mais vigilância, mais viaturas, mais armamentos e mais policiais. Precisamos de mais inclusão, empregos e acompanhamento da nossa juventude pobre, por exemplo, de bairros de Natal, Parnamirim e Mossoró, hoje, sob o domínio (principalmente econômico) das organizações criminosas.

3. Ainda na semana passada o senhor divulgou vídeo comentando sobre o que já se tornou o maior ataque de criminosos ao Estado e se solidarizou com o Governo. Na sua avaliação Fátima acerta nas medidas adotadas até agora. Por quê?

FA: Diante de uma crise, um gestor público (gerente ou governante) pode ter, a meu ver, duas posturas: a) fica impassível, mas não reage num primeiro momento, aguardando o desenrolar dos acontecimentos, para após anunciar medidas que solucionem o problema de forma definitiva; b) reage rápido, em pronta resposta, mesmo sem saber com precisão as causas do problema, mas mobiliza efetivos, no sentido de debelar o problema imediato, para, progressivamente, eliminar o transtorno enquanto um todo. Entendo que no âmbito do RN a Governadora optou pela segunda opção, que lhe foi a mais conveniente como ação de Estado e a mais necessária como ação política. Para lhe ser sincero, dentro do contexto de ser uma governadora reeleita, no começo de ano do primeiro mandato, diante de uma oposição àvida por manchetes desfavoráveis, levando em conta um processo eleitoral se aproximando em 2024, em que uma candidata de seu partido saiu bem colocada nas pesquisas (a deputada federal Natália Bonavides), a Governadora a Fátima agiu rápido, seja para evitar um ataque desmesurado ao programa de seu governo e seu partido, no âmbito da segurança pública e sistema penitenciário, seja na manutenção de seu legado político, como primeira mandatária eleita para o governo, genuinamente de origem popular. O problema é que a opinião pública, sobretudo em tempos de redes sociais, onde não apenas prolifera informação, mas também fake news, funciona na base de links diários sobre fatos favoráveis e desfavoráveis sobre a realidade e não basta reagir rápido, mas também produzir resultados. Para quem deseja soluções rápidas, para os problemas citados anteriormente, de inclusão social e dissolução da organização dos grupos e redes criminosas que se desenvolveram mais de uma década no RN, as medidas de contenção e força adotadas pelo governo estadual, com apoio federal da Força Nacional, podem até parecer insuficientes. Porém, na reserva do possível, entendo que a Governadora Fátima tem exercido com legitimidade o seu papel, de gestora preocupada e que busca o enfrentamento do problema, sem esquecer suas causas. Resta saber se ela terá sucesso e talento político para resolver em seu mandato tão complexo problema.

4. Os ataques reduziram drasticamente, mas não cessaram por completo, a despeito das prisões e transferências já realizadas de lideranças de facção. O que pode estar acontecendo para que haja essa continuidade?

FA: Assim como a pandemia da Covid-19 não foi resolvida em um dia, o problema criminal das ações violentas de facções também é pandêmico. Não há sequer um país do mundo que não viva ou não sofra, ao menos, a ação colateral do crime organizado, nem que seja na base da lavagem de dinheiro. O que buscamos conter, enquanto cidadãos, operadores e operadoras da segurança pública, é a violência generalizada, o caos, o terror, o que impede as pessoas saírem de casa e exercerem os seus direitos mais básicos, como o de livre locomoção e a preservação da integridade física. O que pode ser feito, num primeiro momento, no combate à ação criminosa dos “Salves” das facções, é garantir essas condições mínimas de convivialidade, ou seja, fazer com que as cidades voltem a funcionar. Porém, a curto prazo, é uma quimera achar que grupos criminosos deixem de funcionar após ações diretas e volumosas das forças de repressão do Estado. A presença de muitos policiais e viaturas nas ruas é muito importante para retomar o sentimento de segurança coletiva e as pessoas percam o medo de andar nas ruas, pegar meios de transporte e se abrirem estabelecimentos. Porém, isso é insuficiente para que o crime, na forma que se encontra hoje, reflua, sem que investimentos profundos sejam feitos a curto, médio e longo prazos na inclusão de populações periféricas, sobretudo entre os mais jovens. Fora isso, independente de legendas partidárias ou ideologias, partidos e governos, de esquerda, centro ou direita, correrão o risco de deixar acontecer o que, historicamente faz o crime organizado vicejar e resumem a atividade policial a atividade mais inócua que existe, pra decepcionar quem é policial e quer contribuir para uma sociedade melhor: a triste visão de que sua atividade tão honrada se limita a “enxugar gelo”.