Cultura

Travessa Pax: entre a memória e a preservação

Construída no século XIX, via mantém pavimento original e homenageia dirigível criado por Augusto Severo

por: NOVO Notícias

Publicado 19 de dezembro de 2022 às 15:00

Travessa Pax

Travessa Pax leva esse nome em homenagem ao dirigível Pax, criado por Augusto Severo – Foto: Rodrigo Maker

Localizada no berço do Centro Histórico de Natal, entre a Casa de Câmara Cascudo e o Solar Bela Vista, a Travessa Pax tem quase 80 metros e uma importância histórica-patrimonial inversamente proporcional à sua extensão. Composta por pedras de arrecifes, a via é uma homenagem ao dirigível construído pelo aeronauta macaibense Augusto Severo.

Questionado sobre qual o motivo que torna essa rua tão importante para chegar a ser tombada pela Fundação José Augusto (FJA) e pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan), o historiador Henrique Lucena explica que são dois elementos que precisam ser levados em conta sobre o tombamento. “O primeiro deles é o motivo do nome, uma vez que Augusto Severo, macaibense, tem uma importância para o Rio Grande do Norte e o dirigível Pax foi trazido para Natal em um determinado momento. Isso é um símbolo de modernidade, de sofisticação e o Rio Grande do Norte, de certa maneira, faz parte disso. Então, isso é um aspecto que não pode ser abandonado. O outro aspecto é estético-arquitetônico porque essa travessa é a manutenção da existência de uma pavimentação muito comum entre os séculos XIX e o início do século XX. Então, quando nós olhamos para essa Travessa, estamos olhando para um elemento que faz parte da história da nossa cidade, pelo menos, há dois séculos”, explica o historiador.

Construída em 1904 e fazendo a interligação com a Avenida Câmara Cascudo, que antigamente era chamada de Aires da Cunha, a hoje Travessa Pax era a grande ligação de comerciantes e pessoas em geral entre os bairros da Cidade Alta e a Ribeira. A pavimentação, porém, é só do início do século XX. “Essa pavimentação, do jeito que nós observamos, foi retirada das obras de melhoria do Porto de Natal. Nós temos esse tipo de pavimentação na Rua Santo Antônio, que é uma das mais antigas da cidade. Temos nos alicerces da antiga Catedral, provavelmente em uma série de outros prédios e, mais visivelmente, a gente consegue visualizar isso na Igreja do Rosário dos Pretos. Era assim que se pavimentava a cidade”, esclarece Henrique Lucena.

Apesar de tombada, em 2007, durante até pouco tempo atrás ainda se transitava por ela de carro. “Mesmo Natal sendo uma cidade que tem séculos de existência, com uma importância histórica mesmo estrutural para o Império Português, para o Império Brasileiro, para a Proclamação da República, o natalense não teve educação patrimonial. E o resultado disso é um relativo abandono que a gente tem de áreas importantíssimas da cidade, inclusive do ponto de vista de uma forma de ganho econômico para a própria cidade que se coloca como um turismo de praia, mas que existem essas outras possibilidades. Então, por falta dessa ‘educação’, as pessoas nunca perceberam o significado dessa rua. O translado dessa rua tanto a pé como de veículos acontecia até um tempo desses. E quando se andava de carro por aqui, costumava se dizer que tinha que andar devagar para não cortar os pneus dos carros, mas não pela preocupação de soltar o pavimento, de danificar a pavimentação”, recorda o historiador.

Isso pode ser observado na parte mais baixa da rua, onde há várias pedras soltas, já próximo à Avenida Câmara Cascudo. “Ali o que nós temos é uma depredação feita pelas próprias pessoas que estão nos arredores. Claro que nós temos uma decadência, temos um problema ligado aos efeitos da natureza, aos elementos naturais como iluminação, ventilação, chuva, a própria falta de manutenção, mas ali naquele trecho mais baixo, o grande problema é que os próprios guardadores de carro dessa região retiram essas pedras para demarcar o espaço que os carros vão ficar. E aí acelera o processo de decadência, de crise, de colapsar essa estrutura arquitetônica. E sem manutenção e, sobretudo, sem requalificação, é muito pouco provável que o natalense, os próprios turistas, as pessoas de maneira geral, compreendam a importância estética da cidade”, conta Lucena.

Para ele, há um ‘problema’ de má formação histórico-cultural entre os natalenses, pois a população não é acostumada a dar importância aos elementos patrimoniais. “Isso é um problema de educação, de formação, do próprio conceito de cidadania, porque você acaba jogando lixo, depredando, você não valoriza, você não cria um discurso de cobrança à administração pública sobre aquilo que ela deve fazer e como ela deve fazer. A administração pública existe para as pessoas, com as pessoas. Essa é uma lógica da Ciência Política básica. Então, se você não conhece, você não cobra. O profissional que deveria cuidar, muitas vezes, não compreende os desdobramentos, inclusive, de enriquecimento da cidade, de gerar uma nova forma econômica para a cidade dentro de um turismo histórico, por exemplo”, conclui Henrique Lucena.

PRESERVAÇÃO

A travessa foi tombada pela Fundação José Augusto em 2007, através do decreto normativo 19.930/2007. Além disso, o Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) homologou o tombamento em 2014 (Portaria nº 072), uma vez que está inserida na poligonal de tombamento do Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico de Natal.

Em 2017, o órgão federal apresentou à Fundação Cultural Capitania das Artes (Funcarte) proposta de requalificação da Travessa Pax, incluindo restauração, iluminação, interdição parcial, entre outras adequações. “Os bens tombados estão sujeitos à fiscalização realizada pelo Iphan, a fim de verificar suas condições de conservação. Qualquer intervenção nestes bens deve ser previamente autorizada pelo Instituto”, informou o Iphan, em nota.

O Secretário Municipal de Cultura, Dácio Galvão, que também responde pela Fundação Capitania das Artes (Funcarte), reforça a importância da preservação histórico-patrimonial da travessa. “É importante que se mantenha o caráter de preservação. Porque ali estão dados da historicidade da cidade. A questão preservacionista mantém viva a memória da cidade e, ao mesmo tempo, a insere dentro de um contexto sócio-econômico e cultural”, diz.

Dácio Galvão detalha que a travessa será mais utilizada para atividades culturais. As paredes que margeiam a via pública formam um dos importantes espaços para a arte muralista. A última exposição grafite, aberta ao público em abril deste ano, é uma biografia de Augusto Severo. Os murais não são definitivos, segundo a Funcarte. A ideia é que sejam trocados a cada dois anos.

Além disso, a ideia é reforçar outras atividades culturais no local, que também recebeu o nome de Espaço Cultural K-Ximbinho. Uma das propostas da Funcarte é concluir o projeto de revitalização da travessa com a construção de um palco (na confluência com a Avenida Câmara Cascudo) e de uma passarela, que será construída para garantir a preservação do piso. No entanto, as mudanças ainda aguardam aprovação do Iphan, pois o terreno está tombado pelo órgão federal desde 2016.

“A ideia é ter ali um palco fixo certo e uma passarela, até para atender um grau de acessibilidade, por conta da irregularidade do pavimento. Então, a passarela possibilitará que as pessoas transitem de forma segura, observando melhor o espaço sem necessariamente ter que pisar no pavimento histórico que lá está”, justifica.

Trabalho de manutenção

A reportagem do NOVO encontrou muita sujeira, pedras soltas e mato em diversos locais da Travessa Pax. Segundo o secretário Dácio Galvão, o Município mantém ações para a limpeza e preservação do pavimento histórico. Ele aponta que intempéries naturais são as principais responsáveis pela retirada de parte do piso da travessa.

“Como não tem rejunte de cimento ou coisa parecida entre elas, as pedras são separadas por areia. Então, às vezes, a chuva retira as pedras do local. Estamos continuamente fazendo esse trabalho de recolocação das pedras que se soltam”, explica.

Sobre a vegetação rasteira que marca a divisão entre as pedras do pavimento, principalmente na confluência com a Rua Sachet, Dácio Galvão diz que o trabalho de capinagem é feito continuamente, mas ressalta que o trabalho requer “delicadeza” para garantir a preservação do espaço. “A capinagem que é feita entre as pedras, tem que ser de forma muito delicada, porque não há um rejunte de argamassa”, reforça. A Companhia de Limpeza Urbana de Natal (Urbana) informou, através de nota, que iniciou o trabalho de limpeza.

CURIOSIDADES

RACISMO ESTRUTURAL
Há algumas décadas, as pedras existentes na Travessa Pax eram chamadas de pedras de ‘pé de moleque’. No entanto, o termo não deve mais ser utilizado. “São observações e análises que eram feitas e muito condicionadas a um racismo estrutural, que por ser estrutural, a maior parte das pessoas não conseguia perceber qual era a dimensão daquilo que diziam. Além de ‘pé de moleque’, essas pedras também eram chamadas de ‘cabeça de negro’. Se pegarmos os livros de História da Arte e de arquitetura, por exemplo, nós ainda temos essa referência. Só que dos anos 2000 para cá, tem se tentado fazer uma ressignificação desses termos e desses conceitos. Hoje, chamamos de pedras de arrecife, da antiga pavimentação porque elas não têm um nome específico arqueologicamente, mas a gente também chama de ‘beachrock’, que eram pedras utilizadas em todo o nosso litoral.

CONSTRUÇÃO
A construção da Travessa Pax remonta ao ano de 1904, data dos primeiros projetos de urbanização da região da cidade. Segundo o engenheiro Edgard Ramalho Dantas, que estudou a evolução da pavimentação em Natal, a construção da via se utilizou da mão-de-obra dos retirantes da seca. O material rochoso utilizado foram os blocos irregulares de arenito ferruginoso, extraídos das praias do Meio, da Ponta do Morcego e de Areia Preta.

PAVIMENTO PRESERVADO
O pavimento irregular feito com as pedras ocupou as principais vias públicas de Natal até a popularização dos automóveis. A partir da década de 1920, a pavimentação original começou a ser substituída. Hoje, a Travessa Pax é a única via que preserva as suas características originais.

ESPAÇO CULTURAL
Em 2019, o local recebeu bancos de granito na Travessa Pax. À época, a Prefeitura do Natal informou que a alteração do espaço era parte do processo de revitalização, restauração e urbanização da travessa. O espaço também ganhou o nome de  Espaço Cultural K-Ximbinho. Em 2022, na data que marca os 120 anos do aviador potiguar Augusto Severo, um painel de 170 metros quadrados foi pintado nas paredes que margeiam a travessa. O mural, em grafite, apresenta imagens representativas da vida e obra do precursor das engenharia de aviação, com o desenvolvimento dos dirigíveis.O painel idealizado pelo artista Flávio Freitas retrata a casa em Macaíba, onde nasceu Severo, diversas passagens da vida do aviador, com o teste histórico do balão “Bartolomeu de Gusmão”, que singrou o céu do Rio de Janeiro. O painel traz, ainda, a ilustração do dirigível PAX, que explodiu em Paris, em 12 de junho de 1902, matando Augusto Severo e o mecânico francês Georges Sachet.

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