Se uma situação – seja ela qual for – doer em alguém, mesmo que você não seja capaz de sentir o mesmo, deve, sim, ser capaz de ouvir o outro e rever o próprio posicionamento
Publicado 19 de julho de 2022 às 07:09
Durante a releitura de um livro sobre jornalismo político publicado em 2008, pela Editora Contexto, me deparei com a seguinte frase: “O faxineiro, um negão imenso, saudou-me com um sorriso de orelha a orelha…”. Na mesma hora lembrei da observação feita por Machado de Assis em uma advertência que apresenta ao leitor em uma nova edição do romance “Helena”, na qual ele afirma “cada obra pertence ao seu tempo.”
O desconforto que a primeira frase me causou nesta leitura, bem como a reflexão de que em uma nova edição a expressão “negão imenso” provavelmente seria revista, demonstra o quanto somos seres adaptativos e em constante processo de aprendizagem.
Lá atrás a expressão racista [alguém diria um “brancão imenso” como característica importante de um faxineiro?] passou por mim despercebida, isso porque somos ensinados a normalizar aquilo que é socialmente aceito por aqueles que, em determinado momento, têm o poder de influenciar as tendências de desenvolvimento da situação. Mas essa normalização – neste caso, o racismo – não significa que ela esteja, necessariamente, correta.
Se o certo e o errado não correspondem a valores absolutos, um caminho para nos ajudar a entender o que deve e o que não deve passar por reordenação é observar a percepção do outro sobre temas que, muitas vezes não têm significados para nós. O jornalista e escritor Laurentino Gomes falou sobre isso no programa Roda Viva do dia 11 de julho de 2022, quando questionado sobre a mudança que deu ao uso do termo genocídio, na trilogia “Escravidão”, relacionado ao massacre de negros e indígenas no Brasil, de ontem e de hoje.
O autor explicou que no início da pesquisa não considerava o uso tecnicamente adequado pelo fato de o negro ser considerado um ativo econômico, mas, entre outras coisas, ao se dar conta de que precisava “prestar atenção ao que o outro estava dizendo” pode compreender que “embora não haja uma política deliberada de eliminação dessa população como houve no regime nazista com relação aos judeus e aos ciganos, o resultado é de genocídio e, principalmente, é de genocídio em uma sociedade que recusa à população afrodescendente oportunidades de sobreviver, de prosperar dignamente no futuro.”
Ou seja, Laurentino Gomes dá a linha guia do comportamento ao explicar que se a situação – seja ela qual for – doer em alguém, mesmo que você não seja capaz de sentir o mesmo, deve, sim, ser capaz de ouvir o outro e rever o próprio posicionamento, se não por compreensão da situação e do que ela causa, mas em nome do mesmo respeito que você espera em relação às suas dores. Alias, este é o ensinamento máximo de Jesus de “amar ao próximo como a si mesmo”, não é?
E, se lá atrás, a expressão não me causou o mesmo espanto de hoje é porque, assim como os livros, eu e você também pertencemos ao nosso tempo. Mas, felizmente, as coisas mudam e nós também!
Assista o programa Roda Viva, de 11 de julho de 2022, com o jornalista e escritor Laurentino Gomes, neste link aqui.
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