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Saindo da superficialidade

Cobrança de mensalidade nas universidades públicas do Brasil integra “Projeto de Nação 2035” publicado em fevereiro sob a coordenação geral do general Luiz Eduardo Rocha Paiva

Publicado 26 de maio de 2022 às 19:20

Se por um lado a atividade jornalística me levou a desenvolver a capacidade de ligação dos pontos e à concisão dos fatos para entregar ao leitor a essência do cotidiano para, por meio de uma breve explicação, colaborar com a compreensão da realidade no qual está inserido, a atividade docente é o impulso para ir além disso. 

O estímulo aqui é a compreensão daquilo que está por trás de cada história porque, acredite, nenhum tema ganha visibilidade se não houver um jogo de interesses orientando as ações dos principais atores da sociedade. 

Mesmo que isso não seja novidade, este é o ponto de inflexão para a leitura daquilo que é citado como referência por esses mesmos atores. Afinal de contas, na medida em que a fundamentação teórica de cada um é revelada, também é exposto o caminho a ser seguido por aqueles que influenciam o meu e o seu cotidiano, nos mínimos detalhes, mesmo que a gente não se dê conta disso.

Exemplo dessa realidade é a discussão a respeito da a cobrança de mensalidade nas universidades públicas brasileiras, tema da Proposta de Emenda à Constituição 206/2019, que entrou na pauta da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), da Câmara dos Depurados nesta semana, mas foi à discussão por causa da repercussão negativa que a proposta teve nas redes sociais.

De autoria do deputado federal General Peternelli (União Brasil | SP), a PEC tem como objetivo alterar o artigo 206 das Constituição Federal que, entre outras coisas, garante  hoje a “gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”. Caso a PEC seja aprovada, o texto constitucional passará a registrar a seguinte ressalva: 

Apesar de a proposta apresentar como justificativa à mudança relatórios elaborados pelo Banco Mundial e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que apontam a gratuidade do ensino público como fato gerador de distorções que ampliam as desigualdades sociais no Brasil, é importante destacar que esta é uma meta dos integrantes governo do presidente Jair Bolsonaro.

O relatório denominado “Projeto de Nação – Cenários Prospectivos Brasil 2035 –  Cenário Foco –  Objetivo e Óbices” publicado em fevereiro de 2022 pelo Instituto Sagres, sob a coordenação geral do general Luiz Eduardo Rocha Paiva, que integra o governo Bolsonaro, tem neste um dos 37 temas abordados nas 93 páginas que o compõem. 

Apesar de apresentado como projeto sobre cenários prospectivos, o texto é escrito no tempo presente, como se já estivéssemos em 2035 e,  na verdade, fazendo um retrospecto de como foi possível alcançar os resultados apresentados, a partir dos obstáculos superados. 

Em um estilo textual que beira a esquizofrenia, o relatório afirma, na página 21, que: 

Um marco importante para a melhoria de desempenho das universidades públicas, mas que sofreu forte resistência para vingar, foi a decisão de cobrar mensalidades/anualidades, segundo critérios que levaram em conta a renda pessoal do aluno e ou de seu responsável, o número de alunos sob o mesmo responsável, a concessão de bolsas a alunos de camadas carentes e para os de elevado nível de desempenho. Os avanços foram lentos, mas com ótimo resultado, gerando reflexos positivos nos cômputos das avaliações do SINAES (Instituições, Curso, Desempenho dos Alunos) e, em consequência, uma pequena melhora no posicionamento das IES brasileiras nos rankings mundiais de qualidade.

O texto, que também aborda a cobrança pelos serviços prestados pelo Sistema Único de Saude (SUS), a partir de 2025, destacando, entre outras coisas, que em 2020 vivenciamos duas pandemias a do Coronavírus e a do “Xírus”que “consumiram vultosos recursos que, de modo geral, não ofereceram substanciais legados posteriores — em qualidade e em quantidade”. Que “Xírus” é esse, gente?

A despeito da resistência sobre a privatização do SUS, o relatório enfatiza, na página 22, que

a partir de 2025, o Poder Público passou a cobrar indenizações pelos serviços prestados, exclusivamente das pessoas cuja renda familiar fosse maior do que três salários mínimos. Essa medida encontrou forte resistência, especialmente da oposição política, mas atualmente comprova-se que não somente trouxe mais recursos para o SUS como também racionalizou atividades e procedimentos — o que contribuiu para o aperfeiçoamento da gestão. Hoje o Sistema tem apresentado melhores condições de sustentabilidade que, somadas ao desenvolvimento do setor de Saneamento Básico, resultaram em gradual melhoria da saúde pública no Brasil. 

Essas são algumas das razoes para que a leitura do relatório seja mais do que indicada, bem como a realização de uma pesquisa sobre o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, porque este é o projeto que está em andamento no país que, para os autores, já está consolidado, tendo em vista a escrita retrospectiva do “Projeto de Nação”.

De volta para o futuro: “Projeto de Nação ” é escrito como se estivéssemos em 2035

Isso tudo para dizer que mesmo que seja aparentemente mais fácil seguir na superficialidade de conteúdos e relações, é o aprofundamento nos permite criar redes de conexões que nos ajudam a  compreender o mundo e a nós mesmos, o que favorece a tomada de decisões em todos os âmbitos de nossas vidas. 

Por isso, leia; se permita ouvir, inclusive o contraditório para conhecer e ser conhecido pelo outro; porque nada é mais importante nesta vida do que se reconhecer enquanto indivíduo e ter essa individualidade respeitada, em essência, o que só é possível no exercício da autonomia.

Ah! A expectativa é que a PEC 206/2019, que tem o deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil | SP) como relator, volte à pauta da CCJ na próxima semana. A ver!