Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.

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Opinião

Opinião Nós vamos sorrir!

O mínimo que posso falar é um muito obrigado e um grande parabéns a toda a equipe: desde Marcelo Rubens Paiva, que escreveu o livro, baseado no qual o filme foi elaborado, até o genial diretor Walter Salles e a incrível Fernanda Torres. Que mulher!

por: Geraldo Pinheiro, psiquiatra

Publicado 7 de março de 2025 às 17:15

Em janeiro de 1971, uma família brasileira – pai, mãe e mais 5 filhos (uma dessas filhas estava viajando na ocasião) – tem a sua casa invadida por homens não-uniformizados (nem da polícia, nem do exército) e, armados, começam a dar ordens.

Uma delas é a de que aquele pai de família vai ter que acompanhá-los para prestar depoimento; alguns daqueles homens ficam naquela casa, passam o dia ali, dormem e, na sequência, ainda levam a mãe daquela família e uma das filhas.

Essa história real é uma das cenas do filme “ainda estou aqui”, primeiro filme brasileiro a ser contemplado com um Oscar – de melhor filme estrangeiro –, maior prêmio do mundo do cinema. Para quem esteve na sala de cinema, tal cena é de uma tensão singular. A delicadeza com que os atores executam as ações estão dentro de uma sensibilidade absurda.

Para cada espectador, perceber e sentir a violência – que não se manifesta de forma física, nem verbal – psicológica e verificar que, numa encenação, nada foi ultrapassado, nem foi diminuído do que deveria ser, é sentir que algumas pessoas sentem as coisas do mundo assim como nós (e essa é uma definição de arte, segundo Tolstoi) e que o cinema pode nos fazer viajar por longos sonhos, seja no tempo, seja no espaço.

Sobre o filme, o que falar? Não sou crítico de cinema, mas sou amante dele. Como me disse um grande amigo Ilicht Danniel, “é arte da mais alta qualidade”, arte que emociona, arte que nos faz o favor de nos emprestar um universo paralelo para nós, apreciadores. O mínimo que posso falar é um muito obrigado e um grande parabéns a toda a equipe: desde Marcelo Rubens Paiva, que escreveu o livro, baseado no qual o filme foi elaborado, até o genial diretor Walter Salles e a incrível Fernanda Torres. Que mulher!

E que mulher também que foi a Eunice Paiva, personagem de Fernanda Torres, mulher de Rubens Paiva. Para além do que ela sofreu naqueles dias presa, sem saber onde estava o marido, numa tortura mental humilhante, quando liberta, volta para casa e tem, nada mais, nada menos, do que 5 filhos para criar e sem ter a menor ideia de onde estava o marido e de se voltaria um dia a vê-lo novamente. Não
voltaria.

Hoje diríamos que Eunice “ressignificou”, era uma mulher “resiliente”. Que bobagens! Não! Isso é muito pouco para dizer o que foi essa brasileira. Eunice era sim uma mulher dotada de uma força descomunal, bruta e refinada – resultado, não se enganem, não há outra origem possível para essa força, da junção da sua carga genética (que recebeu um pouco do seu pai e um pouco da sua mãe) e de sua história de vida, de todos os dias contados desde o seu nascimento até aquele fatídico 20 de janeiro de 1971 –, pegou sua vida pela mão e conduziu da forma como melhor achou a si mesma e a seus 5 filhos.

Marcelo Rubens Paiva disse que o filme “ainda estou aqui” conta a história de uma família. Sim, Marcelo, e que família! Mas essa família reconta as histórias de tantas outras famílias brasileiras – claro que cada uma a seu modo, claro cada uma com mais ou menos dificuldades, cada uma com mais ou menos monstruosidades a enfrentar – que, posso dizer, ela conta um pouco a história do Brasil.

Um dia, um repórter do grupo Manchete compareceu à casa de Eunice, depois do desaparecimento de Rubens Paiva, para pedir uma foto da família por ocasião do sumiço do mesmo. Antes de a foto ser feita, ele pediu para todos ficarem sérios. Mas Eunice Paiva, mulher mais forte que todo o exército brasileiro junto, disse: nós vamos sorrir! Nós vamos sorrir! Nós vamos sorrir!

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