Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.

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Opinião

Artigo A intolerância e o jogo de cintura

A distância entre a intenção e o gesto – não parafraseando, mas apenas para citar Chico Buarque – pode ser a mesma distância entre o projeto e a obra

por: Geraldo Pinheiro, médico psiquiatra

Publicado 21 de fevereiro de 2025 às 18:15

Contam uma história da Grécia antiga, que vou reproduzir aqui de forma bem resumida. Teseu, filho de Egeu, foi um grande herói da Grécia. Quando adulto, tinha a incumbência de viajar até Atena a fim de cumprir uma missão deixada por seu pai. Antes de partir, seu avô recomendara que o mesmo fosse para Atenas não por terra, mas por mar.

Tal orientação vinha do conhecimento de que a estrada estaria infestada de malfeitores e bandidos. Porém, Egeu, inspirado pelos feitos de Hércules, que já se notabilizara por grandes vitórias frente a diversos monstros que assombravam a gente daquela época, resolveu ir pela estrada de terra mesmo e, desta forma, ter a oportunidade de se deparar
com malfazejos e derrotá-los.

Acontece que um desses bandidos se chamava Procusto. Ele tinha uma casa que ficava na beira da estrada e tinha o hábito de oferecer guarida aos viajantes que por lá passavam. Oferecia abrigo e oferecia também a possibilidade de que o viajante pernoitasse, usando uma cama especialmente escolhida para esse fim: era o chamado leito de Procusto.

Dizem que o leito de Procusto era, na verdade, uma cama de ferro. Entretanto, Procusto tinha o assombroso hábito de não aceitar que um hóspede não se adequasse perfeitamente ao tamanho da cama, isto é, ele não admitia que o visitante fosse nem um pouco menor, nem um pouco maior que o seu leito. Se o indivíduo fosse menor, mesmo que um pouco menor, ele, dotado de uma força descomunal, espichava as pernas do sujeito até ele ficar exatamente do “tamanho adequado”.

Por outro lado, se o pobre viajante, fosse maior – não importando quanto maior – que a cama, Procusto cortava-lhe alguma parte do seu corpo, para que, dessa forma, este corpo se adequasse à malfadada cama. Claro que, em ambos os casos, o indivíduo evoluiria para a morte. Teseu castigou Procusto, fazendo com ele a mesma coisa que ele fazia com os outros.

Procusto era um intolerante, não aceitava que as pessoas podiam ter diferentes tamanhos. É claro que essa história que contei é uma espécie de parábola; e ela serve como metáfora para refletirmos sobre os tempos atuais. Hoje em dia, quando alguém ou alguma situação não se adequa às nossas expectativas, podemos ou não nos comportarmos como Procusto; podemos ou não sermos intolerantes.

É natural que cada um de nós estabeleçamos planos, metas, projetos para o nosso dia a dia, para o nosso futuro. Mas também é natural que as coisas não saiam exatamente como queremos até porque poucos são os fenômenos que podemos controlar. Alguns dirão até que não podem controlar as próprias vidas, os próprios pensamentos, sentimentos… Mas não é porque isso ou aquilo não se adequa às nossas intenções que está tudo perdido.

Nessa vida, há que se ter habilidade para desenvolver flexibilizações e verificar, em cada situação, o que está indelevelmente perdido e o que pode ser recuperado; o que pode ser reformado e o que pode ser incorporado para ser aprendido no erro, na falta. Não há como não se lembrar de Fernanda e Olívia; respectivamente, personagens do livro “um lugar ao sol” e “Olhai os lírios do campo” de Érico Veríssimo. Elas são belos exemplos do que hoje se chama resiliência – a capacidade de se adaptar a cada situação, a cada dificuldade.

A distância entre a intenção e o gesto – não parafraseando, mas apenas para citar Chico Buarque – pode ser a mesma distância entre o projeto e a obra. Felizes serão aqueles que não terão a rigidez de Procusto, mas conseguirão manter o equilíbrio e não cair com o necessário jogo de cintura.

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