Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.

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Opinião

Artigo O médico doente

Por mais que um indivíduo, sendo médico, conheça tudo o que é possível saber na atualidade sobre uma certa doença e execute com perfeição tais atitudes, não há garantia absoluta de que ele vai resolver a moléstia que lhe aflige

por: Geraldo Pinheiro, médico psiquiatra

Publicado 7 de janeiro de 2025 às 16:15

Uma vez estava fazendo tranquilamente os meus exercícios no pilates (aliás, prática que deveria ser de utilidade pública; sim, sou do grupo “i love pilates”; melhorei bastante das minhas dores no quadril…), quando uma senhorinha, minha colega de pilates, virou-se para mim e disse: “nunca imaginei que médico adoecesse”. De forma imediata, lembrei-me de outro episódio, que traz alguma semelhança a esse: eu era médico da família e da comunidade no município de Rio do Fogo. Àquela época, estava com umas crises de azia, decorrente da doença do refluxo gastroesofágico.

Corri à farmácia da unidade básica de saúde em que eu trabalhava e fui ver o que tinha lá pra melhorar os meus sintomas. Inventei de tomar o remédio na frente de uma paciente e a reação dela foi a seguinte: “um médico! Tomando remédio!?” Os comentários aqui relatados são extremamente comuns. As pessoas têm a ingênua concepção de que “médico não adoece”. Essas ideias são comuns, sabemos, mas, não por isso, deixam de incomodar. Por que, sendo os médicos feitos da mesma substância de que é feita todos os outros seres humanos não-médicos, não poderiam adoecer como todo bom ser humano? Por que não teríamos esse direito?

A referida concepção tem suas origens. Suspeito de alguns pensamentos presentes no senso comum que podem explicar tal ideia: 1) os médicos tudo sabem sobre as doenças e, portanto, conhecem os meios de evitá-las e combatê-las; 2) os médicos, ao saberem os meios de resolver as doenças, os fazem regularmente e com precisão; 3) as estratégias que os médicos conhecem e aplicam em si mesmos contra as doenças são plenamente eficazes para controlá-las.

Infelizmente gostaria de informar que as 3 proposições acima relatadas são incorretas. Não sabemos de tudo. Não sabemos todos os caminhos para prevenir as doenças, nem as curar, mas é verdade que já aprendemos muita coisa (tanto na prevenção, como nas curas) e também é verdade que sempre procuramos aliviar o sofrimento das pessoas. Os médicos não são seres perfeitos; como todo bom ser
humano, tem qualidades e defeitos. Embora saibamos, muitas vezes, os caminhos da prevenção e da cura, por um motivo ou outro (e, muitas vezes, o motivo é o excesso de trabalho que impingimos a nós mesmos), nos descuidamos e não fazemos o que é necessário. Aqui vale o ditado: “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.

E, agora, vem o mais importante. Grosso modo, podemos dizer que, no processo saúde-doença, existem duas forças: de um lado, a doença; do outro lado, as ações para prevenir, curar ou diminuir o sofrimento oriundo da doença (e essas ações podem ser orientadas por todos os profissionais da saúde, cada um a seu modo e com seus respectivos objetivos; não apenas médicos). O problema é que, algumas vezes, as forças da doença são superiores às estratégias promovidas por esses profissionais.

Então, por mais que um indivíduo, sendo médico, conheça tudo o que é possível saber na atualidade sobre uma certa doença e execute com perfeição tais atitudes, não há garantia absoluta de que ele vai resolver a moléstia que lhe aflige.

O título do artigo que escrevo é uma evidente referência ao título do livro do médico Dráuzio Varella. Em 2004, fazendo uma viagem para a floresta amazônica (dentre tantas viagens que ele já fizera para fazer trabalhos de pesquisa), adquiriu febre amarela. Ele se vacinara contra a febre amarela quando muito jovem e, mesmo assim, adquiriu a doença. Neste livro, ele faz uma espécie de diário sobre os sintomas
e, de forma mais peculiar, reflete sobre a condição inversa de se ver doente; médico, que já cuidou de tantos doentes.

Aviso-vos: os médicos adoecem! E mais: morrem por causa dessas doenças! E esse médico doente, como todo ser humano que adoece, deve procurar ajuda de um colega e de outros profissionais da saúde para a resolução do seu mal. Para quem ainda não pensou sobre essa evidência, pode ser uma provocação para poderem verificar o quanto somos (os seres humanos) frágeis. Porém, ao mesmo tempo, pode servir de estímulo para, ao percebermos a falibilidade da condição humana, nos unirmos e nos solidarizarmos, cada vez mais, uns com os outros, em busca do alívio dos sofrimentos.

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